11 de janeiro de 2022

Converter cabeça feita?

Acho que não sou a melhor pessoa pra falar do assunto, mas tenho direito de especular sobre o que presenciei. Cabe a você julgar até onde sua leitura deve ir e, a mim, até onde minha leitura do fato deve ser exposta. Garanto a descrição do fato, sem enfeites ou remendos, o aconteceu-assim-assado que nunca falha. O que repele o leitor é o rumo que a cabeça toma diante dele porque, quando examinado, o fato é como objeto que se espatifa, a gente junta os cacos e não consegue recompor – e insistimos no erro, compondo um objeto novo somente pela diversão. Cada cabeça tem suas verdades, embora não tenham tantas assim no mundo – é que a cabeça não se importa, vive por suas verdades e morre por seus argumentos.

O fato é: a menstruação da minha mãe desceu no meio do segundo tempo. Por enquanto, nada a especular – afinal, é só o começo do fato, o objeto ainda sobre o aparador, intacto. Ela precisava comprar absorvente, aqui só tem do pequeno, protetor diário, enquanto Araújo caía pela direita no campo ofensivo, atraindo a atenção do meu pai, que arqueou o corpo à frente, punhos fechados e braços rijos à espera do momento de extravasar de raiva pelo chute fraco, nas mãos do goleiro.

Minha mãe não sabia dirigir. Nem eu. Sobrou meu pai. O pedido estava implícito no anúncio do problema, preciso comprar absorvente, senão, e o velho gritou, ali! toca a bola rápido!, porque o Josué já tinha um marcador no seu encalço. O Goiás não venceu aquele jogo, mas a cabeça teimava em ignorar o previsível – 5 a 3 aos 32 e a cabeça chamando o argumento, dá tempo de virar, fiel à sua verdade capenga.

Posso ter enfeitado, mas o fato está dito: a menstruação da minha mãe desceu no meio do segundo tempo e ela queria que meu pai a levasse na farmácia pra comprar absorvente, mas ele não deu ouvidos e ela se zangou. Minha leitura do fato parte da ideia banal – e eu espero não afugentá-lo, já que você deve estar pensando: ah, de banal já basta minha vida – de que é através das pequenas coisas que entendemos as grandes complexidades. Ainda estou tentando entender – talvez o problema fosse eu?, ou vai ver a culpa foi da minha mãe mesmo, que fora içada a um posto detestável sem oferecer resistência; a cabeça feita lhe dizendo a todo instante: é sua sina; e lhe convencendo de que seus gritos nos cantos não passavam de loucura. Sugeri táxi e ela, não tenho dinheiro, os olhos nele e a cabeça lembrando: é sua sina; pouco antes do Marabá receber pelo lado esquerdo, avançar pra dentro da área, pênalti!, meu pai me abraçou, sorriu pra minha mãe e voltou à televisão – Dimba na bola, 43 do segundo tempo, gol, 5 a 4, dá tempo de virar!

Aquele sorriso de relance selou a desistência dela, que atravessou a sala raspando o assoalho a passos curtos, pra ter mais tempo pra pensar – a cabeça hesitando, reclamando, tomando um rumo insólito, o pecado se desenhando com calma e consciência. Vou ver se a vizinha tem, sussurrei ao meu pai, quer passar vergonha? fica quieto aqui, depois eu vou na farmácia, que roía as unhas lamentando os míseros 3 minutos de acréscimo sem que a cabeça reconsiderasse o argumento, ainda dá!

Não entendo de menstruação, mas acho que sangue não espera. Filho também não, sai rasgando o ventre sem perguntar se a hora é boa – e se fui eu a única razão dos dois existirem juntos? Filho nunca sabe como as coisas eram antes dele aparecer. Mas prefiro especular a devoção da cabeça que não se converte diante do fluxo menstrual e do objeto que se espatifa, paft!, antes do Marcelinho cobrar a falta na entrada da área, aos 47, vai lá ver o que aconteceu, filho.

Como converter cabeça feita? – o devoto não se questiona e meu pai não tinha quem enfrentasse seus argumentos com outros; podia ser que do confronto saísse coisa melhor do que eu, vai saber; separação, inversão de papéis ou pelo menos a ida rápida à farmácia pra comprar o absorvente a tempo de conter o fluxo. Quem sabe uma tragédia, uma vez que cabeça nenhuma faz acordo com sina trágica – recompõe-se a vida, ainda que de forma errada, mal remendada, em busca de novas verdades e bola pra frente

Atravessei a sala pensando no que o pastor dissera no domingo passado: porque o marido é a cabeça da mulher; e na minha mãe assentindo de olhos fechados do meu lado, a Bíblia apertada ao peito, amém. No chão do corredor havia cacos por todo lado e sangue, muito sangue – a cabeça facilmente se refaz quando se vê e se sente cheiro de sangue; com a mesma facilidade que a do meu pai se refez depois da cobrança da falta, gol do Vasco, 6 a 4, agora já era.

*

Luiz Gustavo Medeiros nasceu no Rio de Janeiro, em 1990, e mora em Goiânia desde 2002. É formado em Ciências Sociais pela UFG e mestre em Literatura pela UnB. Em 2020, seu livro venceu o Prêmio Hugo de Carvalho Ramos (o mais antigo prêmio literário em atividade no país), organizado pela União Brasileira dos Escritores – Seção Goiás e que já revelou autores como Bernardo Élis, Yêda Schmalz e Gilberto Mendonça Teles.

O conto acima está presente no livro O corpo útil, publicado pela Patuá.