5 de janeiro de 2022

Lucidez, um conto de Marília Santos Krüger

Amarelo, vermelho. Verde. A vontade era de abandonar aquele poste da Avenida Independência. Estava lá havia anos indicando quando era permitida a passagem, mas poucos respeitavam a indicação de seus sinais. Ignoravam o vermelho. Terra de daltônicos, pensava no início, mas logo entendeu que aquele mundo que construía suas próprias regras sabia demoli-las com a mesma velocidade. A rapidez dos carros ultrapassava qualquer sinal e os burladores não viam a escuridão onde podiam se meter. 

Os homens queriam mais carros nas ruas, lutavam para chegar rápido, concorrendo com relógios. Preocupados em erguer edifícios que encostassem no céu, competiam com o espaço, em uma luta marcada por avisos histéricos de aluga-se e vende-se junto às janelas. Ao longo do tempo, a cidade foi sendo preenchida com fios de luz que conduziam à conexões, outras vezes ao emaranhado desleixo.

O calor subindo das calçadas, as guerras entre carros e bicicletas, pássaros colidindo com edifícios envidraçados, tudo isso, que era parte do cenário onde vivia, começou a lhe doer. O barulho das buzinas suscitou um tumor que já tinha percorrido o bulbo de sua estrutura. Algumas vezes, manteve-se vermelho por horas, até subirem no poste e forçarem a sequência de três cores nos tempos determinados pelo coordenador do sistema de tráfego. 

Gostava daquela esquina, apreciava a música e os cheiros vindos da lancheria ao lado, agradavam-lhe os passantes cruzando a rua em ritmos diferentes, assim como os cães brincando com seus donos, mas queria ser outra coisa. Algo que pudesse conservar o ruído das águas, não só das ruas, como o chafariz da esquina. 

Um dia, os carros pararam ao ver o sinal vermelho e ficaram aguardando a luz verde depois de vinte segundos, o período usual. A partir daquele momento, ele não indicou mais nada. Subiram no poste naquele entardecer, mas ninguém foi capaz de fazer com que voltasse a funcionar. Os carros exalavam fumaça branca de inverno enquanto parados no congestionamento quilométrico que se formou. Galhos de árvores sacudiam sobre os entregadores de jornal de rua que aproveitavam o trânsito lento para oferecer todos os periódicos em mãos. 

Havia entregado toda sua luz para aquela esquina e dessa vez tinha partido. No outro dia, um semáforo mais novo, com um verde limão, ocupava seu lugar, cintilando pela Avenida Independência com a mesma força que ele irradiava em tempos remotos. 

                                                                      *

Algumas quadras acima de onde viveu acendendo luzes, a voz de uma mulher vibra uma melodia estrangeira enquanto dobra roupas que serão colocadas em uma pequena maleta. A cantiga entra em seus poros e o desperta. Em breve sairá das águas. Percebendo os fortes movimentos na barriga, ela fala com ele, Marcos, você está querendo nascer.

Amanhã seremos outros — Marília Santos Krüger | arteseecos

 

Marília Santos Krüger – conto Lucidez 

O conto está incluso no livro Amanhã seremos outros (Artes & Ecos, 2021)