20 de agosto de 2021

A marcha da emancipação feminista

Poético e político, novo romance de Cristina Judar usa metáforas e a história de duas jovens para romper com a naturalização patriarcal dos corpos das mulheres   

Em o “Manifesto ciborgue - ciência, tecnologia e feminismo socialista no final do século XX”, ensaio tão polêmico quanto central, publicado em 1985, a bióloga e filósofa norte-americana Donna Haraway defende que inéditos enquadramentos históricos impostos a partir das novas tecnologias estariam prestes a ruir antigos pressupostos científicos e políticos que nortearam o pensamento ocidental e que serviram, entre outros objetivos, à dominação das mulheres. Dicotomias rígidas seriam, segundo ela, desmanchadas para darem lugar a conceitos mais flexíveis e que produzirão alternativas às tradicionais concepções de corpos, especialmente os femininos, pondo em xeque suas supostas naturalidades e revelando suas possibilidades políticas. Debates teóricos e inserções escolásticas à parte, o fato é que em nossos dias - 36 anos após a publicação do ensaio, a substituição da naturalização do corpo feminino por sua dimensão política tornou-se um dos elementos centrais de ao menos parte do feminismo na luta contra o patriarcado, e o novo romance de Cristina Judar, “Elas marchavam sob o Sol” (Dublinense), traduz para a literatura ficcional com precisão ímpar e lirismo admirável essa perspectiva. 

No lugar de debutantes, maiores de idade

As jovens Ana e Joan são as protagonistas da história, ambas prestes a completar dezoito anos. Duas mulheres com visões de mundo distintas, a primeira consumista, absorvida pelas pressões e arquétipos estéticos e comportamentais da sociedade contemporânea. A segunda, mais intuitiva e menos influenciada pelo mundo da propaganda voraz de formas pré-definidas, mais próxima de sua ancestralidade e do passado. Duas mulheres-corpos-mulheres, individualizadas, personalíssimas em suas construções narrativas, mas cujas existências extravasam a si próprias para tornarem-se símbolos de outros femininos. Suas histórias são narradas mês-a-mês, por onze meses, até as datas de seus aniversários, momentos cruciais em suas vidas, e este é o primeiro aspecto de ruptura que Cristina promove com a ideia de naturalização dos corpos. O rito de passagem em sua história não gira em torno dos 15 anos das personagens, idade símbolo tradicional da transformação da menina em mulher, da inocência em fertilidade, em disponibilidade para o casamento, um claro marco do patriarcado. Em seu lugar, figura a passagem para a maioridade política e jurídica, para a emancipação em relação aos país e para a gerência autônoma do próprio corpo e do próprio destino. Cristina transporta a festa de 15 anos para a celebração dos 18, substitui a passagem marcada pelo anúncio da fertilidade pela declaração de independência, desnaturaliza e ao mesmo tempo politiza o feminino, este é o rito que importa.  Ana e Joan são protagonistas com corpos femininos políticos, e suas diferenças pouco importam neste quesito, pois a emancipação deve ser uma conquista de todas, isso não é pouca coisa em um romance, mas a autora consegue dar conta com sensibilidade e com a dose certa de assertividade, ainda que metafórica, de um tema tão complexo e importante. 

No marco temporal, a coletivização dos corpos e de suas causas 

Ao dividir a história em capítulos que são meses, de janeiro a dezembro, Cristina Judar mais uma vez reforça a representatividade coletivista de Ana e Joan, transportando-as para um lócus simbólico-estrutural muito além de suas características e trajetórias individuais. Ambas fazem aniversário no último mês do ano, um forte indicador do coletivo e que em certa medida despersonifica a data, convertendo-a na data de todas, uma vez que fim do ano é marco cultural de passagem em nossa sociedade. A evolução da história segue a cronologia dos meses, o que também remete fortemente à passagem do tempo de forma mais ampla. Este é outro ponto crucial na obra, a emancipação das mulheres corre contra o tempo no aspecto coletivo e no individual, não há tempo a perder, a marcha está em curso, e o início dela é sinal inequívoco de que não há mais ponto de retorno, não há volta, assim como os meses do ano também não voltam. A substituição do corpo naturalizado pelo corpo político emancipado, portanto, é meta a ser cumprida até o fim, e meta premente. Importante também para que as mulheres deste tempo não somente deixem seu legado de lutas e conquistas, mas vivam parte do que conquistaram, pois os corpos delas, todos os corpos, caminham para a finitude, e os corpos das antepassadas, como a avó de Ana, retratados em uma das partes mais líricas e belas do romance, convertem-se em relógios a alertarem para a urgência do tempo. “Os relógios de cuco e de badaladas são fantasmagóricos. Reza a lenda que há espíritos dentro deles: quanto mais velhos, mais fantasmas eles contêm, naturalmente atraídos pelo som, que, para eles, funciona como uma espécie de imã. Minha avó era antiga quando parou de funcionar” (pág 57). “Aceitei o presente, imaginando quantos anos passariam até que minha mãe-mãe se tornasse uma mãe-relógio e até que eu mesma me tornasse uma velha-relógio” (pág 58). 

No título, a militância vigorosa, transparente e ao mesmo tempo dolorosa

Ana, Joan e outras mulheres da história – estas últimas ainda que não protagonistas, mas fundamentais ao carregarem marcas relevantes em seus corpos, o corpo torturado, o corpo violado, o corpo submetido – não caminham, não andam, elas marcham pelos meses-capítulos, como aponta o livro ainda em seu título. A marcha constitui-se em um deslocamento rápido, cadenciado e organizado, geralmente realizado por uma tropa.  Não há nessa expressão uma aleatoriedade, mas uma clara alusão à militância, com um recado ainda mais importante, e que o leitor só consegue perceber ao final: a militância não está restrita ao engajamento institucional, à luta formal, a militância dos corpos políticos está no viver, na emancipação diante do dia a dia e da rotina. Outro ponto de grande importância simbólica no título: elas marchavam sob o Sol. Nada sob o Sol está à sombra, escondido, e este é um dos elementos balizadores dos diferentes movimentos de emancipação feminista que observamos em nossa contemporaneidade: a transparência das causas, e das ações. O Sol, por sua vez, também queima, cega, e até mata. Não há, portanto, marcha transparente sem dor e sem risco. Tropas do patriarcado, marchas tradicionais para deslocamento tático de guerra, via-de-regra, acontecem na escuridão da noite.   

Na poesia, a liberdade de ser o que se quiser

A forte simbologia deste romance, e sua mensagem ampla e profunda captada em seus códigos, contudo, não o convertem em um manifesto político-panfletário. Trata-se de uma obra de ficção de alta estatura, sensível, com múltiplas camadas, narrativa bem estruturada e uma linguagem poética que transporta esses mesmos corpos políticos para a liberdade de serem o que quiserem, desejarem quem quiserem, para a fluidez das identidades e dos desejos, o que é retratado de forma emocionante e simbólica em sua parte final. Um livro gerador de amplos debates, mas, acima de tudo, gerador de afetos, e essa é uma combinação digna das grandes histórias. 

Leonardo Valente é escritor, tem quatro romances e uma antologia publicados, e é autor do recente “criogenia de D. ou manifesto pelos prazeres perdidos”, romance publicado pela Editora Mondrongo.