13 de agosto de 2021

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Muito se inventou, outro tanto se aumentou sobre a sequência que levou Átila Salgado a matar e morrer. Religiosos viram ali a prova de que o diabo existe; policiais, advogados, juiz e promotor de justiça não viram mais que um conjunto de filigranas legais. Durante quase dez anos, coube ao meu pai a inglória tarefa de proteger Átila da vingança de dez famílias. O seguinte relato oscila entre dar forma literária ao que ouvi dele quando criança e lançar luz sobre uma mente tão inspirada quanto perturbada.

Antecedentes criminais

Na manhã de 1º de fevereiro de 1968, Átila Salgado sentou-se à mesa para o café da manhã dos seus dezoito anos e deu com o que parecia uma caixa de sapato onde deveria encontrar o habitual conjunto de talheres, prato e xícara. Dentro da caixa, um revólver e um punhado de munição. Ao ver Átila erguendo a arma, a mãe se benzeu, os irmãos fizeram interrogações com testas e bocas — e o pai, olhinhos cintilantes, proclamou solenemente:

— Hoje, você começa a virar macho.

Dali a pouco, pai e filho estavam no quintal, fazendo mira em ninhos de pardal, frutículos de abacaxi e pétalas de rosa. Bom aluno, Átila logo passou da teoria à prática. Em dois ou três dias, ensaiava manobras cinematográficas para sacar a arma, puxar o gatilho e disparar contra a presa invisível. No domingo seguinte, a família voltava da missa quando Átila viu um caracol no jardim; correu ao quarto, buscou o revólver, abriu a janela e, em dois, três, seis segundos, estraçalhou a concha.

O papai, orgulhoso:

— Sangue do meu sangue!

O princípio do universo

Primeiro anista da Escola Politécnica, Átila Salgado era um jovem metódico e ambicioso. O metodismo vinha da família materna, dizia o pai. E a prova estava nos mais imperceptíveis detalhes. Um exemplo: Átila organizava a própria roupa no armário, segundo a ordem de uso pré-estabelecida – a camisa a ser usada no domingo era a primeira da esquerda para a direita, a da segunda-feira era a segunda e assim por diante até chegar à do sábado, que encerrava a sequência.

A ambição vinha da família paterna, dizia a mãe. E a prova estava no objetivo declarado de Átila ao ingressar na faculdade: a mecânica do universo era inglesa e vinha de Newton, a relatividade era alemã e vinha de Einstein, mas o princípio unificador de todas as Físicas seria brasileiro e viria de Átila. Isso foi o bastante para amansar o pai, bacharel e chefe de Polícia, que sonhava com um bacharel e juiz de direito, desembargador e ministro em Brasília.

Anos de formação

O período que vai entre 1968 e 1969 foi ignorado pelos investigadores em ambos os inquéritos policiais: o de 1970, que apurou seus crimes; o de 1981, que apurou sua morte. Para sorte minha e dos leitores, entretanto, a mãe de Átila preservou pertences e anotações do filho e me concedeu acesso ao material quando eu fazia a pesquisa para escrever sua história. A princípio, tudo me pareceu fruto da curiosidade invertebrada de um intelectual de província. Seis itens me chamaram a atenção:

01 edição gasta de A Vontade de Poder, de Friedrich Nietzsche;

01 edição intocada dos Principia Mathematica, de Whitehead & Russel;

01 cópia manuscrita do Liber Abaci, de Leonardo de Pisa;

01 desenho a mão da espiral de uma galáxia não identificada;

01 tabela datilografada contendo símbolos físicos;

01 pedaço de papel quadriculado onde se lê o número 1,6180339...

Tentei entrevistar parentes e amigos que conviveram com Átila naquele período, mas todos se mostraram muito resistentes a tocar no assunto. Apenas duas pessoas, com a condição do anonimato, abriram o bico. A primeira disse que o livro de cabeceira de Átila em 1968 era uma edição de bolso, em inglês, de Dr. Jekyll and Mr. Hyde. A segunda acrescentou que, em 1969, a rotina de Átila oscilava entre um clube de pesquisa sobre propulsão de foguetes e noitadas solitárias de estudo.

Ambas observaram que Átila nunca foi visto armado.

O inquérito de 1970

Os autos do inquérito policial que apurou os crimes de Átila não ajudam muito a compreender e construir a história, exceto por um documento: a tabela datilografada em que Átila programou todos os assassinatos que cometeria. Ei-la:

D01D03D05D13D17
D02D04D06D14 
D07D09D11D15 
D08  D10D12D16 

No verso da tabela, ele manuscreveu as seguintes datas:

D01 – 01/01/1970            D03 – 04/01/1970            D05 – 12/01/1970         

D02 – 02/01/1970            D04 – 07/01/1970            D06 – 20/01/1970

D07 – 02/02/1970            D09 – 29/03/1970            D11 – erro

D08 – 23/02/1970            D10 – 23/05/1970

Em seu próprio depoimento, Átila limitou-se a responder QUE fiz o que fiz porque fiz a todas as perguntas que lhe foram dirigidas. Os demais documentos não passam de empulhação bacharelesca.

O problema das fontes

Os jornais de 1970 e 1981, enriquecidos de sensacionalismo policialesco, não serviram aos propósitos de minha investigação. Digna de nota é apenas a sempre distorcida reação da opinião pública aos fatos de sua própria época: rumores de dissolução do tecido social, clamores pelo Estado Forte, delírios escatológicos e messiânicos. Sobre os inquéritos, mencionarei o que falta no parágrafo oportuno. Restou-me a memória dos relatos feitos pela memória do meu pai.

Confraternização universal

Fazia dois anos que 1º de janeiro fora declarado Dia Mundial da Paz pelo Papa. Desde então, a família Salgado rompia Ano em oração pelo fim das guerras e concórdia entre os povos. Daquela vez, os filhos maiores anunciaram que, após a missa, subiriam a Bela Vista para sacudir os ossos na boate Cartola. A mãe protestou, o pai homologou o anúncio e assim foi feito. Às dez da noite de 31 de dezembro de 1969, doutor Salgado, esposa e filhos ocuparam um banco da igreja.

Irmãs e irmãos, quando Nosso Senhor diz que não veio trazer paz, mas espada, não devemos nos tornar inimigos de nossas próprias casas, pois tudo isso não passa de uma figura de retórica com a qual Nosso Senhor expõe a contradição dos que se recusam a perder a própria vida a fim de ganhá-la e, pensando que a ganham nos prazeres do mundo, terminam por perdê-la.

As palavras do padre no sermão tocaram Átila. Mais tarde, na porta da boate, ele sentiu um mal-estar súbito e avisou aos irmãos que precisava voltar pra casa. Na porta de casa, escutou uma voz clamando no deserto. Desceu até a paróquia. O portãozinho de ferro da casa paroquial estava destrancado. Bateu à porta, ninguém respondeu. Já ia embora quando ouviu gemidos escapando do beco lateral. Caminhou em sua direção e, uma, duas, três janelas depois, entreviu o padre enrabando o sacristão.

Agora e na hora da nossa morte

No raiar da manhã, os irmãos voltaram da boate e deram com Átila acordado e agitado, oscilando entre anotações frenéticas à mesa de estudo e caminhadas rápidas de um canto a outro do quarto. Quando acordaram, ele dormia sossegado. O dia transcorreu sem fatos dignos de nota. Passava das onze da noite quando, a casa mergulhada no sono profundo, Átila levantou-se, vestiu-se e saiu na pontinha dos pés. Seu destino: a casa paroquial. Sua missão: corrigir uma assimetria.

Repetiu-se o roteiro da véspera, exceto por um detalhe. Portãozinho destrancado, ninguém à porta e o sacristão enrabando o padre no terceiro quarto. Átila posicionou-se entre as abas abertas da janela, sacou o revólver e – um olho no relógio, outro no gatilho – aguardou o instante programado. O primeiro tiro acertou fatalmente o sacristão na cabeça. O padre gritou, desvencilhou-se do cadáver sobre suas costas e, gemendo e chorando, ajoelhou-se, começou a rezar.

A torre da igreja soou meia-noite.

... assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do Mal, amém. Ave-Maria, cheia de Graça, o Senhor é convosco. Bendita sois Vós entre as mulheres, Bendito é o Fruto do Vosso ventre, Jesus. Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte, amém.

O segundo tiro acertou fatalmente o padre no coração.

O motel de Intermares

Naquela sexta, a família Salgado viajaria para a casa de praia em Cabedelo. Quando a notícia das mortes na casa paroquial se espalhou na cidade, doutor Salgado anunciou que teria de ficar. Mas os filhos fossem com a mãe, e ele tomaria carona em alguma viatura assim que o caso fosse encaminhado. No sábado, ele aportou na praia. Crime passional, a Diocese pedia discrição e sigilo. À noite, os poucos vizinhos acenderam fogueira para contar histórias e estrelas.

Assim ficou-se sabendo que ali perto, nas areias de Intermares, era possível ver lamparinas a razoável distância umas das outras, ao pé das quais havia sempre um buraco cavado com pá e, dentro de cada um deles, um casal fazendo sexo. As autoridades civis toleravam o costume e prometiam às autoridades eclesiásticas que, tão logo algum empresário aceitasse o desafio de abrir o primeiro motel na cidade, encerrariam aquela sem-vergonhice em lugar público.

Na noite seguinte, quatro jovens da vizinhança reuniram-se com a desculpa de ir a João Pessoa, pegaram o carro de algum pai emprestado e tocaram para observar o motel de Intermares. Átila não quis ir junto. Aproveitaria a noite sem Lua para investigar a escuridão cósmica boiando no mar. Quando o grupo partiu, ele saiu à praia e caminhou pela areia na direção Sul. Não demorou muito a avistar a primeira lamparina. Aproximou-se e aguardou dois, três, seis segundos.

Primeiro, ouviu-se o estrondo de um tiro. Depois, as lamparinas foram se apagando ou tremeluzindo às pressas em direção aos carros. Duas semanas depois, o assunto alcançou os jornais: maníaco mata quatro pessoas em Intermares. O arcebispo dava nome e propósito ao maníaco: era o Diabo, proclamando seu reino em meio à depravação. A Polícia fechou o motel a céu aberto. E a família Salgado voltou para casa, aliviada de o caso estar em outra circunscrição.

O cabaré de Anita

Padres e putas folgam às segundas. Embora fosse casto, Átila Salgado tinha irmãos homens, frequentava a casa de tios e ouvia conversas na Politécnica, por isso estava a par de certos fatos universais. Sabia também que, para as bandas de Bodocongó, ficava o cabaré de Anita. E foi por lá, em dia sem movimento, que agendou as duas correções seguintes. A princípio, não se espalhou a notícia de que, em 2 e 23 de fevereiro, duas moças foram mortas na porta de uma casa suspeita.

Quando, entretanto, dois ilustres filhos de boas famílias foram fatalmente alvejados – um, entrando na mesma casa em 29 de março; o outro, saindo pela mesma porta em 23 de maio – e seus papais e mamães exigiram justiça, os jornais alardearam: maníaco mata quatro pessoas em Bodocongó. O bispo deu nome e propósito ao maníaco: era o Diabo, proclamando seu reino em meio à depravação. A Polícia fechou o cabaré. E doutor Salgado ganhou alguns frios brancos nas costeletas.

Erro

O inverno de 1970 foi rigoroso na casa da família Salgado. Todos griparam e arrearam, a começar pelo pai, em junho, e terminar por Átila, em agosto. Ele ainda estava acamado quando, certa noite, a família saiu a convite de uma festa de aniversário. Átila havia dormido o dia quase todo e, quando acordou, deu com o irmão mais velho, que ficara à sua cabeceira fazendo companhia. Que dia é hoje? 20 de agosto. Que horas são? Passa das onze.

Átila fez o possível e o impossível para convencer o irmão a juntar-se a família e deixá-lo quieto em seu canto. Estava bem, já se punha em pé e, após tantos dias deitado, até que lhe cairia bem uma caminhada do portão à esquina. Mas o irmão não cedia, insistia em cuidados e, só quando Átila explodiu em um porra, Marciano, vai cuidar da tua vida e me deixa em paz, ele perdeu a paciência, esmurrou o interruptor, bateu a porta do quarto e foi ver televisão na sala.

O tempo escorria. Átila levantou-se, vestiu-se e tentou sair na pontinha dos pés. Deu com o irmão vidrado no televisor. Aonde você vai? Dar uma volta. Está louco ou o quê? Estou são e sano. Mas não vai mesmo. Vou sim. Só se for por cima do meu cadáver. O tempo se esgotava. O irmão veio pra cima de Átila. Ele se virou e colocou a mão dentro do casaco. Três, dois, um, a torre da igreja soou meia-noite, volver. Átila atirou, o irmão se baixou, a bala atingiu o espelho do aparador.

Era tarde. E a arma descarregara.

As dez famílias

Doutor Salgado viu-se diante de três desafios: evitar a prisão do filho dileto, impedir que dez famílias vingassem seus mortos e manter a integridade da própria casa. Mas Átila não ajudou. Denunciado pelo irmão, confessou as dez mortes. Ao pai, restou o delito. Chamou dois homens de confiança, arquitetou o plano de fuga e fez o filho desaparecer das vistas. Condenado, Átila passaria dez anos em um esconderijo, tempo suficiente para a poeira baixar e a prescrição livrá-lo do Serrotão.

Da Polícia, trataria doutor Salgado. Usaria de sua posição para manter a si mesmo bem-informado e aos colegas, confundidos. Das dez famílias, trataria um capanga. Foi aí que meu pai entrou em cena. Homem rústico e fiel, ele já prestara alguns serviços extraoficiais ao chefe de Polícia. Quando a sentença de Átila foi publicada, doutor Salgado armou meu pai, passou-lhe instruções detalhadas e lhe deu o endereço do esconderijo.

Átila chegou ao destino três dias depois. Desde o princípio, mostrou-se afável e cordato. Assegurou ao protetor que não havia o que temer, dele ou das dez famílias. Tudo não passa de paranoia do meu pai. E fez apenas duas advertências: que fosse amarrado entre a meia-noite e as vinte e três horas e cinquenta e nove minutos nas cinco datas escritas em um pedaço de papel; que meu pai deixasse o posto à meia-noite de 11 de junho de 1981 e não retornasse mais ao local.

Ao longo dos anos, Átila e meu pai tornaram-se bons amigos. Confidenciaram um ao outro seus segredos. Nas cinco datas anotadas no pedaço de papel, meu pai o amarrou e ele atravessou os cinco dias padecendo de delírios cujo teor a mordaça não permitiu conhecer. Às vinte e três horas e cinquenta e nove minutos de 10 de junho de 1981, os dois se abraçaram, disseram adeus e nunca mais se viram. Meu pai acompanhou pelos jornais os acontecimentos.

O inquérito de 1981

O relatório do inquérito policial foi taxativo: Átila Salgado foi assassinado por um pistoleiro, a mando das famílias de suas vítimas. Como as famílias negavam a acusação e o matador não foi encontrado, o inquérito foi arquivado por falta de provas. Os jornais alardearam que Átila Salgado foi morto pelo bando de justiceiros que atuava na cidade desde meados do ano anterior. Uma lista contendo seu nome, entre outros marcados para morrer, chegou a ser publicada em primeira página.

Em seu leito de morte, no final dos anos 00, Marciano Salgado mandou chamar um padre, a quem fez ouvir a confissão. Dizem boas e más línguas que revelou ter sido ele quem matou o filho da própria mãe.

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Thiago Lia Fook (Campina Grande/PB) é autor de três livros de poesia e uma coletânea de contos (Antigamente era melhor), publicada pela editora Moinhos em 2019. Foi membro do Núcleo Literário Caixa Baixa. Suas crônicas podem ser lidas em http://facecronicas.blogspot.com/.