7 de julho de 2021

A poesia de Mariana Belize

Mariana Belize é poeta, mestra em literatura brasileira - UFRJ e escreve resenhas no Projeto Literário Olho de Belize.

A Mosca

E passa.
Nunca te louvam, erva-daninha
às vezes a mesma ou outra inaudita
oculta sob o inédito, súbita linha
tendré que matar-te a ti, obscena
em Hollywood, em setembro
ou num cemitério na Eslovênia.
E passa.
Em casa a tentativa
é mais humilde, toma
ares de legítima defesa:
batida de jornal, toalhinha
papel enrolado, pano de prato
chinelo ou palma. Palavrão
que não mata cachorro a grito:
o gato caça em silêncio e sozinho.
E passa.
Taca-se de um tudo na maldita:
na cozinha tudo é prova, delícia,
carcaça, pudim, arroz, garrafa vazia
que ela espia, lambendo o sangue, a água
a loucura e o desânimo da gente
sobrevivente de toda trapaça.
Ela entra e sai. Na deixa, retorna.
Senta no cadáver, depois te beija.
E passa.
A mosca é saliva, fel e ameaça.
Ninguém sabe de tudo que ouve:
todo homem, tua caça.
E vai e volta e se diverte na tragédia
e conta e ri e desdenha de toda desgraça.
A mosca esconde seu latim
no zum-zum-zum do soberbo na praça:
— Não pode ser poético esse suplício
só pode ser prosaico este verso, é chatíssimo!
um pano de chão faz teu verso alexandrino?
uma torre de marfim faz de ti um gênio?
um vaso chinês que rompeu em pedacinhos
pedacinhos impossíveis de colar, eu digo
cada cabeça, meia sentença. teu advogado
o diabo que não se compadeça desse teu poema
feito fofoca demandada em qualquer catapulta
que invada e lustre da rainha feroz a disputa.
E passa.
A mosca é faceira, é tirana
é brejeira, é facínora risonha
Se lambe a tua fragrante ferida
um verso te ultrapassa a carne que sangra
Ela degusta e inflama o berne anêmico
que dominará tua coxa inteira.
E passa.
A mosca é pitiú, é visagem
é meu dom infiel, é rima
de passagem, horizonte e
linhagem pantagruélica.
E passa.
Eu bebo o verso moscatel
fujo da loucura desse embróglio
tropeçando em línguas a granel
Sou mosca
vadia,
eles passarão.

abyssus abyssum invocat

o abismo não mente:
quem está embaixo
puxa pra si
outros cadáveres.

Pai

És de lento cozimento
súbito, volátil, ameno
chama crua, impassível
enigma que se esgueira

As cartas não mentem jamais, pai.

Tu resides na concha das minhas mãos
És estátua frágil e cintilante
Arco sem corda nem seta
desmemoriado centauro de plástico.

eu pequena empurro as ampulhetas
espalho areia, poeira e cinzas
ergo a estrela polar para teu retorno
sem armadilhas

queimo inteira neste primeiro fogo
mas tu não te moves de ti.

Mais um gole

corro de canto a canto,
para fugir do tempo.

não tenho coragem
de gritar no escuro.

Mãe

Âncora torta dos meus pesadelos,
mesmo na vertigem de lágrimas
acerto a seta selvagem
na tua indecisão.
Faço por mim.

Quando vem a tempestade ela se arranha inteira.
Grita com o silêncio. Teme a coragem dos raios.
A passagem das Horas a ofende. Estabelece o caos.
Ela canta com mil vozes o mesmo refrão:
“Nunca seremos nada.”

De dentro destes versos, salto
do passado ao agora
fujo das tuas garras de raposa
corro da tua língua viperina,
me liberto da tua sombra
vertiginosa, primeva, tacanha.

E com essas palavras
eternizo a lembrança
quebrando a maldição
invocando a primitiva linhagem
feminina
e te digo com toda força de mil demônios:
nada de ti me devora.

Galáxia

junto poeira dos enigmas alheios.
tudo que faço tem o mesmo tom.

pra quê escrever, se de silêncio
é feita a seiva que alimenta a vida

é o silêncio:
retine o vidro e quebra o
verso
fechando a glote.

como pode este céu
ser tão

breu

.

.