26 de maio de 2021

Como se faz o poema de Aline Cardoso

Aline Cardoso (João Pessoa, 1991). Mulher negra, produtora de conteúdo digital, multiartista e mãe solo. Licenciada em Letras – UFPB; Especialista em língua, linguagem e literatura – CINTEP; Mestra em linguística – UFPB; Fundadora da Editora Triluna. Arte-educadora na Crescente – Escrita Criativa; Especialista em Arteterapia em formação; Organizadora do Sarau Selváticas, do zine feminista Coletivo Sagaz e do zine Lucidez Opcional; participou da fundação do Slam Parahyba. Autora de ‘A proporção áurea do caos’ (Escaleras, 2019) & ‘Harpia’ (Triluna,2020), Garimpo de Silêncios (em processo). Idealizadora da Chamada da Lua Negra, focada exclusivamente na publicação de livros inéditos de poemas escritos por pessoas negras plurais. Selecionada para integrar as antologias: Novíssima Poesia Paraibana, organizada por Amador Ribeiro Neto e Poetas negras brasileiras, organizada por Jarid Arraes. Para acompanhar o meu trabalho, siga no instagram: @linhanegra, @editoratriluna, @sagazzine & @lucidezopcional.

Como se faz o poema?
Com poesia, fúria e liberdade. Acho que eu não faço os poemas, eu os trago ao mundo como se parisse quimeras flutuando nos abismos da linguagem.

Você tem algum ritual de preparação para a escrita? Como é esse processo?
Não tenho rituais rígidos e não consigo criar rotinas para a escrita, os poemas surgem, vou agrupando primeiro nos caderninhos e depois passo para um doc no computador, imprimo e em seguida vou alterando o que desejo.

Você revisa seus poemas?
Reviso, sim, quantas vezes achar necessário. Acho legal deixar o texto descansar um pouco. Nem sempre os textos aparecem inteiros, às vezes vou anotando fragmentos e gatilhos aos quais retorno para desenvolver e lapidar antes de assumirem um acabamento estético.

De onde surgem as ideias para escrevê-los?
Do cotidiano, dos noticiários, das memórias, dos sonhos, dos assuntos que me engatilham e dos muitos temas que me atravessam enquanto mulher negra, bruxa, mãe solo, trabalhadora, professora… sobram ideias e fontes para garimpar. Recentemente tenho descoberto poemas vindos do silêncio, o meu terceiro livro: Garimpo de silêncios está em desenvolvimento tomando como norte essa noção dos não-ditos e dos silenciamentos que nos cerceiam.

Qual é o seu poema favorito? (Seu e de outro poeta)
O meu poema favorito até agora está em harpia, p. 95:

rapinas, peçonhas, escamas e fogo

toda mulher é selvagem
ainda que tentem silenciá-la,
toda gente nasceu de um ventre

não somos submissas,
não somos reservatórios,
apoios, muletas ou colunas

nós somos a revolução,
criamos o mundo e
todo o poder de escolha é nosso

ainda que os homens
escrevam leis e contratos
que nos digam não à liberdade

somos o próprio fogo,
posto que purificamos,
criamos, aquecemos

com a mesma voracidade
também destruiremos
suas estruturas sórdidas

este poema é uma prece,
afiem as garras,
inoculem suas peçonhas

assumam suas rapinas,
lustrem suas escamas e
incendeiem tudo.

Fiquei entre um poema de Hilda e um de Ferreira Gullar, então, mando os dois:

Do desejo
I
Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.

*

O cheiro da tangerina

Com raras exceções
os minerais não têm cheiro

quando cristais
nos ferem
quando azougue
nos fogem
e nada há em nós que a eles se pareça

exceto
os nossos ossos
os nossos
dentes
que são no entanto
porosos
e eles não: os minerais não respiram.

E a nada aspiram
(ao contrário
da trepadeira
que subiu até debruçar-se
no muro
em frente a nossa casa
em São Luís
para espiar a rua
e sorrir na brisa).

Rígidos em sua cor
os minerais são apenas
extensão e silêncio.
Nunca se acenderá neles
– em sua massa quase eterna –
um cheiro de tangerina.

Como esse que vaza
agora na sala
vindo de uma pequena esfera
de sumo e gomos
e não se decifra nela
inda que a dilacere
e me respingue
o rosto e me lambuze os dedos
feito uma fêmea.

E digo
– tangerina
e a palavra não diz o homem
envolto nessa
inesperada vertigem
que vivo agora
a domicílio
(de camisa branca
e chinelos
sentado numa poltrona) enquanto
a flora inteira
sonha à minha volta
porque nos vegetais
é que mora o delírio.

Já os minerais não sonham
exceto a água
(velha e jovem)
que está no fundo do perfume.

Mineral
ela não tem no entanto forma
ou cor.
Invertebrada
ajusta-se a todo espaço.
Clara
busca as profundezas
da terra
e a tudo permeia
e dissolve
aos sais
aos sóis

traduz um reino no outro
liga
a morte e a vida
ah sintaxe do real
alegre e líquida!

Como o poema, a água
jamais é encontrada em estado puro
e pesa nas flores
como pesa em mim
(mais que meus documentos e roupas
mais que meus cabelos
minhas culpas)
e adquire
em meu corpo
esse cheiro de urina
como
na tangerina
adquire
seu cheiro de floresta.

Esse cheiro
que agora me embriaga
e me inverte a vida
num relance num
relâmpago
e me arrasta de bruços
atropelado
pela cotação do dólar.

E não obstante
se digo – tangerina
não digo a sua fresca alvorada

que é todo um sistema
entranhado nas fibras
na seiva
em que destila
o carbono
e a luz da manhã

(durante séculos
no ponto do universo
onde chove
uma linha azul de vida abriu-se em folhas
e te gerou
tangerina
mandarina
laranja da China
para
esta tarde
exalares teu cheiro
em minha modesta residência)

jovem cheiro
que nada tem da noite do gás metano
ou da carne que apodrece
doce, nada
do azinhavre da morte
que certamente
também fascina
e nos arrasta
à sua festa escura
próxima ao coito
anal
ao minete
ao coma
alcoólico
coisas de bicho
não de plantas
(onde a morte não fede)
coisas
de homem
que mente
tortura
ou se joga do oitavo andar

não de plantas e frutas
não dessa
fruta
que dilacero
e que solta
na sala (no século)
seu cheiro
seu grito
sua
notícia matinal.

Aline Cardoso (João Pessoa, 1991). Mulher negra, produtora de conteúdo digital, multiartista e mãe solo. Licenciada em Letras – UFPB; Especialista em língua, linguagem e literatura – CINTEP; Mestra em linguística – UFPB; Fundadora da Editora Triluna. Arte-educadora na Crescente – Escrita Criativa; Especialista em Arteterapia em formação; Organizadora do Sarau Selváticas, do zine feminista Coletivo Sagaz e do zine Lucidez Opcional; participou da fundação do Slam Parahyba. Autora de ‘A proporção áurea do caos’ (Escaleras, 2019) & ‘Harpia’ (Triluna,2020), Garimpo de Silêncios (em processo). Idealizadora da Chamada da Lua Negra, focada exclusivamente na publicação de livros inéditos de poemas escritos por pessoas negras plurais. Selecionada para integrar as antologias: Novíssima Poesia Paraibana, organizada por Amador Ribeiro Neto e Poetas negras brasileiras, organizada por Jarid Arraes.
Para acompanhar o meu trabalho, siga no instagram: @linhanegra, @editoratriluna, @sagazzine & @lucidezopcional.