20 de maio de 2021

O sonho de Lucas, de Marcelo Vinicius

Um som continuado ecoa por todo o livro, coisa que para quem já experimentou viver perto de uma casa em obras ou de um prédio sendo construído pode atestar que é exercício de paciência e de manutenção da sanidade mental.
Ao redor da casa de Lucas há uma obra sendo construída, o barulho de uma obra, não sabemos muito bem como se dá esta obra, somente sabemos que o barulho ecoa pela rua e adentra pela casa, se fazendo onipresente mesmo quando não mencionada pelos narradores – que no caso deste livro, são múltiplos.

A mente criativa do leitor pode ir além e completar a falta por meio de onomatopeias, mas que constantemente aparece, quase como se fosse o bater do coração da história de Poe, quando os tormentos da vida atravessam as personagens que habitam a casa de Lucas, e o bate-bate das construções ao redor surgem na narrativa com sutileza.
Poderia ser um sinal de loucura de Lucas? Ninguém menciona as obras ao redor da casa, ninguém acossado por uma vida que sai do script, que abandona os planos, para em um momento para maldizer a obra que se atreve a adentrar em seu drama, quase como se estivesse a rir.

Ou não passaria de um sonho de Lucas?

É muito curioso que mesmo quando a narrativa não se encontra entregue às palavras de seu protagonista que, como numa jamsession, toma do narrador oculto a voz para que ele mesmo possa nos contar seus dramas, os sons da construção não aparecem como algo que ele venha a dar muita atenção, mas ainda assim ela está lá, marcando presença.

O sonho do título possui dois sentidos distintos, como notamos ao longo do livro, sonho no sentido de uma aspiração de como levar a vida no futuro, de entrar na faculdade e realizar sua formação profissional, como também sonho no sentido mais psicológico do termo, o ato de sonhar quando se dorme, ou nem sempre quando se dorme, porque a construção poderia muito bem manter Lucas acordado ao longo da noite, ainda que não saibamos até que horas a construção continue a todo vapor.

Ler este livro se apresenta como um desafio. Não um desafio colocado para o leitor de maneira oficial e imediato, é coisa que aos poucos vai se desenvolvendo em sua maturação do livro, enquanto lê, ficando bem estabelecido pela narrativa quando Lucas está a sonhar, quando Lucas está a dormir, o que somente começa a se confundir um pouco mais a frente.

O desafio não se apresenta necessariamente em descobrir quais passagens são sonho ou quais passagens são a realidade de Lucas, isso parece ter pouca importância para quem lê – e novamente, são passagens bem distinguidas pela narrativa, que diz “estava a sonhar” – o que a maturação da leitura faz questionar é a significação dos sonhos de Lucas.

O imaginário popular, dado a sua cota de psicanálise, aponta certos significados convencionados para determinados tipos de sonho: se uma pessoa sonha com dentes caindo, com cobras e aranhas, tudo isso possui um significado em especial, e o nosso exercício de leitores no caso deste livro é adentrar na mente de Lucas, uma mente cuja interioridade nos é fornecida em seu caráter mais ilusório, apresentando toda sua confusão em conseguir apreender o Agora, que faz perguntar quais seriam as significações dos sonhos de Lucas.

E assim, a confusão com a realidade.
A escrita de Marcelo Vinicius é sempre muito direta, recheada com os diálogos familiares, numa composição dinâmica que abraça o leitor, que mesmo quando entregue à confusão de não conseguir distinguir o que é sonho e o que é realidade – porque nem mesmo Lucas sabe quando é sonho ou quando é realidade – é difícil de abandonar o livro, ou de dizer que sua leitura é difícil.

Esquizofrênica? Sim.
Difícil? Não.

E é precisamente este ponto da escrita dada a contornos realistas que faz de tão sedutora a leitura do livro, quando as palavras são entregues à confusão perceptiva de seu protagonista, quando Lucas passa a dormir acordado, ou quando Lucas sente a sonolência o acuando quando sentado a estudar, ou quando algo de estranho parece acontecer ao seu redor.

Problemas familiares e sua mãe aparece morta, foi ontem ou hoje, não se sabe, como o protagonista do “Estrangeiro”, de Camus, tudo tão tranquilo, tudo tão calmo, ninguém a chorar, os irmãos que tanto dependem da mãe lidam com tudo aquilo de maneira simples, mas – êpa lá! – era apenas um sonho.
Quem sonha com a morte da mãe?

O choque maior aqui não é tanto a descoberta da realidade ou da fantasia dos episódios, se se trata de sonho ou realidade, e sim de conseguir adentrar nesta mentalidade de Lucas, numa narrativa que ganha certa carga de erotismo por meio da convivência deste jovem adulto com as duas mulheres de sua casa – sua mãe e sua irmã.
Não é um erotismo que choque as audiências que tomem em mãos este livro, é um erotismo sutil num aspecto muito próximo do freudiano, quando a carnalidade daqueles corpos se aproximam e se repelem, são ímãs com suas partes de trazer e afastar.

Há um erotismo na relação de Lucas com sua mãe, na relação de Lucas com sua irmã, na relação de Lucas com os monstros que vêm à sua casa, há um erotismo com os sons da construção que chegam aos seus ouvidos e que de alguma maneira se enraízam nos ouvidos do leitor.

Só não há erotismo com Caroline, a menina que Lucas conhece pela internet, por quem se interessa e com quem chega a marcar um encontro. Caroline é uma presença tão alheia quanto a construção ao redor da casa, que nunca se sabe muito bem o que está sendo construído, ou demolido, apenas sabe que está lá.
Ou estaria mesmo?

Na virtualidade das existências, o encontro com Caroline, não feito cara a cara, poderia ser mais um dos eventos ilusórios. Para quem gosta de solucionar enigmas – sem crimes – eis uma leitura convidativa.