15 de maio de 2021

A poesia de Margarida Vale de Gato

Margarida Vale de Gato, uma das poetas mais proeminentes da poesia contemporânea portuguesa, chega ao Brasil, de maneira inédita, pela Editora Moinhos, com seu livro Mulher ao mar: Brasil.

Vala

não sou assim tão lírica
mas mistura-me láudano
no fel, sobra-me inferno
para a neurastenia
descorrói, se podes
o zelo do ódio
do espelho próximo

nem sou tão flor
mas coloca-me por fora
com um vinco de luz
um afinco de corrente
não me deites terra
não te impacientes
se morro na minha época

não sou bandeira
épica, mas sopra-me
dobra-me e desprega-me
com repelões de vento
enrola-me se puderes
quando me adiantar
à frente das explosões

Cat people

Curiosa a tribo que formamos, sós
que somos sempre e à noite pardos,
fuzis os olhos, garras como dardos,
mostrando o nosso assanho mais feroz:

quando me ataca o cio eu toda ardo,
e pelos becos faço eco, a voz
esforço, estico e, como outras de nós,
de susto dobro e fico um leopardo

ou ando nas piscinas a rondar –
e perco o pé com ganas sufocantes
de regressar ao sítio que deixei

julgando ser mais fundo do que antes.
A isto assiste a morte, sem contar
as vidas que levei ou já gastei.

Mutilação

Se por fora não pareço oca dentro
podre ao centro estou.

Sem querer armar-me em modernista tenho Alturas
em que experimento a lúcida perceção
quase materialista e táctil
do progresso da loucura
sou tal película sobre-
posta sobre-exposta a
precipitado cálculo de abertura –

aí o pânico a insónia eu cindida.
Só escrever me alivia um pouco
e dantes inclusive consolava;
agora é mais um corte
que sob a pele se exerce a prevenir
a coisa mais violenta que me pulsa na cabeça
e compulsivamente desta forma se escoa
mas não seca nunca estanca apenas se desloca.

E quanto disto não assenta na suspeita
de que me torno assim pior pessoa?

Margarida Vale de Gato, autor do livro Mulher ao mar, Brasil, publicado recente pela Editora Moinhos, traduz, escreve e é professora auxiliar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Traduziu Henri Michaux, Nathalie Sarraute, Yeats, Marianne Moore, Jack Kerouac, Sharon Olds, Louise Glück, entre outros. Doutorou-se em 2008 com uma tese sobre a receção de Edgar Allan Poe na lírica portuguesa da segunda metade do século XIX. Tem publicado ensaios dentro das suas áreas de especialidade como Translated Poe e Anthologizing Poe (co-organização com Emron Esplin, 2014 e 2020). Na sua obra literária, contam-se os livros de poesia Lançamento (2016), a peça de teatro Desligar e Voltar a Ligar (com Rui Costa, 2011), e Mulher ao Mar. Este último é um projeto poético com atualizações periódicas (Mulher ao Mar Retorna em 2013 e Mulher ao Mar e Grinalda em 2018) e ramificações: Mulher ao Mar Brasil é uma nova seleção com inéditos e uma nova ordem para a edição brasileira.