23 de dezembro de 2020

A poesia de Ana Paula Dacota

Ana Paula Dacota é belo Horizontina, poetisa, cria poemas visuais e videopoesia. Perfume atrás da orelha foi seu livro de estreia (2019) com arte de André Araujo, publicado pelo selo Alma de Gato da editora Scriptum.


vida wireless

sem fio
mata saudades
deseja felicidades
desvenda dilemas
fotografa e envia
recebe a boa
e a má notícia
sem wireless
é more or less

*

impropérios inócuos

minha escrita nasce
de versos bastardos
rápidos e exorcizados
no meio da madrugada

tropeço nas palavras
traduzo as ideias
combustão neural
estabanada

“cale-se, me deixe dormir”
impropérios inócuos
para as rimas que teimam
em nascer ao raiar do dia

*

atentado ao pudor

no dia em que saí às ruas
com duas bonecas nuas
fui abordada pela polícia
pois era proibido sair às ruas
com brinquedos nus

no dia em que saí às ruas
com o dedo anular esquerdo nu
fui abordada por um sujeito
que se achou no direito de me cantar

no dia em que saí às ruas
seminua
ninguém notou
era carnaval
todo mundo achou normal

*

escrevendo à deriva

escrevo em suportes
que não suportam
o peso das palavras
escrevo em papéis
que são roídos pelas traças
no fundo das gavetas
escrevo no vapor
no box do banheiro
que não dura um segundo
escrevo nas páginas dos jornais que leio
e que amanhã servem de fossa pro gato
escrevo nas paredes
que ninguém entende
escrevo nas portas dos banheiros públicos
respondendo imprecações de terceiros
escrevo para desconstruir vieses e reveses
escrevo mapas para descobridores
cujas naus se encontraram

*

perfume atrás da orelha

pingo perfume atrás da orelha
arrumo o cabelo, penduro brinco
ponho maquiagem, escondo a olheira
fico criando imagens dentro do meu circo
sinto a tontura e a tortura do carrossel
e dentro do redemoinho que me despenteia
cega pela luz que inunda meu ser
abro caminho para a centelha
desbotando o batom que antes era carmim