6 de outubro de 2020

Eu lembro do dia que o Otacílio morreu

Eu lembro do dia que o Otacílio morreu. Ele era tão miúdo que, na falta de dinheiro pro caixão, a gente enterrou ele no baú de vime que era da vó Ita, que já tinha morrido também e que só tinha umas tapeçaria fedorenta lá.

Eu e o Otacílio dividia o quarto. Antes de apagar a vela, ficava olhando ele com aquele corpo que parecia de formiga com um cabeção e barriga inchada enquanto as pernas pareciam patas finas. Depois da morta de vó Ita, ele pegou a mania de dormir de barrigão pra cima com as mãos cruzadas em cima. Achava horrível.

Um dia fiquei curiosa e perguntei pra que fazer isso se esse é o jeito que colocam gente morta no caixão. Ele me olhou com a cara mais séria do mundo e respondeu com a língua entre os buracos de dente que falta num piá da idade dele.

- Se eu morrer dormindo, já to na posição certa.

- Mas por que você haveria de morrer dormindo?

- Porque pessoas morrem dormindo. Vó Ita morreu.

- Vó Ita era velha. Você é criança.

- Eu sou criança velha.

Não discuti mais. Lembrava do dia que ele chegou chorando da escola porque os menino tiraram sarro dele dizendo que Otacílio era nome de velho. E era mesmo, era homenagem ao biso que a gente nunca conheceu porque morreu quando o pai tinha a idade dele. Dele o meu irmão, no caso.

Nunca mais que quis botar os pés na escola. A mãe deixou. Nas nossas bandas, ninguém nunca virou dotô ou qualquer coisa que usasse a cabeça pra fazer. Nós tava mesmo destinado a trabalhar na lida da terra ou vender coisa na beira da estrada, então que deixasse o menino não chorar mais por ter nome de velho.

A mãe também não gostava do nome dele, mas ai dela reclamar. Decisão do home macho ninguém contestava ou ganhava olho roxo. No dia que ele caiu durinho feito pedra no meio dos pé de milho, o Otacílio riu. A mãe virou um tapa na orelha dele, onde já se viu rir da morte do pai. Eu esperei pra rir de madrugada, encolhida na cama, depois de apagar a vela. De pensar que ele nunquinha mais ia me puxar pra fora do quarto pra fazer coisa errada no meio do mato já me dava alegria danada.

Mas quis Deus que só Otacílio pagasse nosso pecado de rir da morte do pai. Quando eu acordei ele tava exatamente como ele disse que taria se morresse dormindo: como ficam os morto no caixão, tipo a vó Ita. O pai não teve caixão, foi enterrado no meio da plantação e nunca mais nasceu nada lá. Semente ruim dá nisso.

Tentei mexer nele, mas tava durinho, durinho. Chamei a mãe que veio correndo feito flecha. Ia adiantar nada, só serviu pra ajoelhar mais rápido na frente da cama e chorar agarrada na formiga Otacílio.

O menino era leve. Uma vez na cidade disseram que ele tinha problema em pegar vitamina da comida, ou qualquer coisa assim, e precisaria de uns troço caro pra completar a alimentação. O pai nem deu ouvido, ia comer caldo de milho com farinha como todo mundo da casa.

Desnutrido o guri, apesar da barriga grande. Ou talvez fosse velho mesmo, como ele dizia. Sei que a mãe tirou a tapeçaria do baú da vó Ita, colocou um cobertor e o Otacílio em cima. Deu direitinho. Ela mesma carregou o baú até o cemitério, comigo do lado, implorando pra deixarem enterrar ele lá com benção do padre.

Não teve jeito. Levamos o baú de volta pra casa. Naquela noite a mãe acendeu todas as velas que a gente tinha e a casa não resistiu. Nem a mãe. Eu corri como deu pra correr, mas a mãe não quer se mexer. Fiquei de longe vendo a casa brilhar na noite escura até sobrar só fumaça e coisa preta.

Eu lembro do dia que o Otacílio morreu. No fim das contas foi o último dia das nossas vidas. Depois de lá me levaram embora.

Fiquei sabendo que as coisas mudaram por lá e até construíram prédios por onde morei, mas não voltei pra ver. Eu já não era mais a menina que apagava a vela antes de dormir, como não apaguei nenhuma daquelas velas que transformaram aquela vida em cinzas. Foi só muito tempo depois que me dei conta que nunca chorei pela morte de Otacílio.

Talvez porque ele nunca tivesse estado realmente vivo.

Maya Falks é escritora, publicitária e jornalista, idealizadora do projeto Bibliofilia Cotidiana, leitora crítica, oficineira e mentora no Escritório Literário e autora dos livros Depois de Tudo, Versos e Outras Insanidades, Histórias de Minha Morte, Poemas para ler no Front e Santuário.