2 de setembro de 2020

Galinha Pedrês

Você está de bronca com o estômago largado ao sol. Hoje não tem sombra. O setor está tão calmo que desconfia. Ninguém na rua, laje fantasma, bar fechado, bola parada na esquina como se isso fosse normal. Ué. Não é domingo nem dia santo, alguma coisa tem aí. Sua barriga grita. As galinhas da Dona Pequena estão bicando um mato alto acolá; perninhas enfiadas no bueiro.

Não tem outra. Você age e muito rápido, afinal resolve virar o pior tipo de gente dentro da comunidade: ladrão de galinha. Elas debandam, mas você consegue pegar uma pedrês, não sem antes cair no lamaçal e tingir a canela. Melhor é se entocar na quitinete, Marreta e Sargento estão dando um giro, só pode pois casa vazia. Devem tá caçando luta de MMA, os caras não desistem de tirar um trocado e esmurrar uma cara.

A bichinha faz barulho. Correria. Rompe pescoço. Depena. Cozinha. Rapa a geladeira, tem uma batata, meia cebola murcha e um dedinho (na verdade, pedaço da menor falange de um dedinho) de dente de alho. Você enche a pança e dorme.

Acorda de supetão assustado que nem motorista em blitz. Continua o marasmo. Nenhum sinal de Marreta e Sargento, sem pio de Dona Pequena e suas crias. Você começa a se preocupar e sai. Na entoca, Dona Pequena está por detrás de um mato da sua calçada. A mulher usa máscara e grita, você desentende, quer fugir, acha que foi flagrado.

Cadê a tua máscara, ninguém sai mais sem máscara, em que mundo tu tá vivendo, hein? Vai te proteger, aqui na nossa rua quase todo mundo já pegou.

Você continua confuso, desembestado e sujo e só agora cai na real que depois de abocanhar a pedrês nem tomou banho, apenas se estirou e apagou. Dona Pequena continua falando em doença, contágio, aumento da curva, tubaína. Você começa a se amedrontar, a ter o cu na mão e pergunta na maior cara de Teich:

– Mas Dona Pequena, essa gripe pega comendo galinha?

 

 

hermes de sousa veras é antropólogo e escritor, tem contos e poesias publicadas em revistas & portais literários. esse conto ficou entre os 50 textos pré-selecionados dos mais de 1.000 enviados para a antologia Retratos da Quarentena (título provisório, Dublinense e Editora Elefante).