24 de fevereiro de 2020

Quatro passeios pelo bosque da ficção

Para Umberto Eco, o “bosque” era a metáfora perfeita para o texto narrativo. “Um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam”, ele define em seu famoso ensaio, citando Jorge Luis Borges e Italo Calvino (que morreu enquanto concluía sua conferência “Seis Propostas para o Próximo Milênio”, nos deixando apenas cinco delas desenvolvidas). Em “4321”, Paul Auster traduz esta metáfora numa obra que tem quatro grandes arcos narrativos, todos distintos entre si, mas todos dizendo respeito ao mesmo personagem: Archibald Isaac Ferguson.

Descendente de um imigrante bielorrusso que fez a vida na América, Archie é uma típica criança judia que cresce na pacata cidade de Montclair, em Nova Jersey, filho de um comerciante local e de uma dona de casa com veleidades artísticas, que sonha em montar seu próprio estúdio de fotografia. Esta é a “matriz” do personagem, cujo passado familiar é narrado no capítulo 1.0 – uma espécie de marco inicial do “bosque” de Auster, estruturado a partir de capítulos numerados que vão do 1 a 7, com subcapítulos para cada arco narrativo (do 1.1 ao 1.4, do 2.1 ao 2.4, e assim por diante...).

A progressão matemática pode parecer complexa, mas vai ficando mais simples conforme nos deparamos com as sutis diferenças que vão ocorrendo nas trajetórias dos quatro “Archies”. Em um dos subcapítulos (o spoiler não sou eu quem dou, mas a própria orelha do livro, na edição brasileira da Companhia das Letras), Archie perde o pai num incêndio; na outra, seu pai se torna um magnata do comércio. Cada uma dessas bifurcações gera outros entroncamentos que vão sendo percorrido por Auster, no comando de seu protagonista, de início com muita maestria, criando um romance fluído a ponto de parecer que seus duplos irão se encontrar em algum momento do diagrama.

Esta ilusão, de resto criada pelo próprio ideal de unidade romanesca que todo leitor carrega consigo, logo é desfeita com eventos mais abruptos na trajetória de cada um dos personagens. Tais eventos são narrados com uma carga dramática assombrosa, e rendem as passagens que não deixam a dever ao caráter monumental da obra (mais de 800 páginas na edição brasileira e mais de mil nas em inglês). Mas há, naturalmente, excessos e caminhos obscuros pelos quais Auster se embrenha, guiado por este brilhantismo.

O que torna seu jogo mais atraente, mesmo quando cai nestes abismos de longas e intermináveis páginas, são as reflexões incorporadas pelos seus heróis sempre que eles se veem no limiar de grandes feitos. Seja perante Deus ou perante o universo material (os eventos históricos são sempre imutáveis, independente das pequenas ações dos Archies), eles estão constantemente se questionando, cada um à sua maneira, sobre o poder ou a impotência de mudar o seu próprio destino, seu livre-arbítrio diante de uma porta que escolheram ou não abrir.

A angústia dos personagens (talvez a angústia de Deus ao conceder o livre arbítrio, mas se manter o guardião do destino de suas criaturas) é talvez a mesma do autor, igualmente obcecado pelo romance que escreveu e pelo romance que deixou de escrever. Esta metalinguagem (um clichê da contemporaneidade, que muito deve a Auster) pode incomodar um pouco, sobretudo a leitores mais escolados em sua prosa. As previsibilidades, no entanto – construída com pistas que o próprio Auster não se furta em ir deixando –, são contornadas com a recorrência ao delicioso mito fundador do livro: a anedota daquele avô que chega aos EUA e muda de nome na fila da imigração.

O preâmbulo da história (que muito lembra os prólogos dos filmes dos Irmãos Cohen) é o que faz de “4321” uma interessante parábola sobre a existência humana e sua marca no mundo, um exercício filosófico ao qual Auster se propõe literariamente, incorporando o efeito borboleta e a teoria dos mundos paralelos à experiência realista da ficção. “4321” é uma contagem regressiva demorada para um desfecho talvez não tão apoteótico que seus vários desfechos anteriores, mas o caminho se faz caminhando – diria o andarilho – e é o que Auster parece nos soprar ao ouvido no final.

 

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