9 de outubro de 2019

Bússola e espelho, as dores de todos os homens

BÚSSOLA E ESPELHO, AS DORES DE TODOS OS HOMENS

 

Antes de tratar da novela Trago comigo as dores de todos os homens (publicado pela Escaleras, 2019), gostaria de fazer menção ao seu autor. O paraibano Roberto Menezes é, sem dúvida, um dos melhores autores da literatura brasileira contemporânea. Seus romances mais recentes Julho é um bom mês para morrer e Palavras que devoram lágrimas (publicados pela Patuá) revelam com força incomum duas protagonistas confinadas em espaços claustrofóbicos refletindo sobre suas perdas e desventuras. Quer Maria, descascando as camadas de tinta, uma a uma, para expor sua tentativa de ascensão social ou Laura, a minha preferida, desaparecendo pouco a pouco enquanto escreve a sua mãe desaparecida. Aliás, essa desfragmentação humana, liquefazendo suas personagens, suas vidas, suas certezas, suas seguranças, ora expondo uma fragilidade transfigurada na verborragia agoniante e agoniada de Maria, ora na melancolia de Laura. Num e noutro caso, forjam-se nas dificuldades, nessa dialética do ser transitório que todos somos e não podemos deixar de ser. E Roberto é um mestre na composição de seres humanos encarnados, críveis, potentes em suas histórias.

Nesse sentido, Trago comigo as dores de todos os homens não decepciona, porém o cinismo inacreditável e absurdo de seu narrador nos toma de assalto, incomodando de maneira singular pela franqueza e transparência com que lida com uma situação, no mínimo, controvertida. Gustavo Inácio Monte, um poeta ácido, macho tóxico, destila soberba e indiferença seu relato a uma atenta plateia de jornalistas.

Em meio de um processo judicial, ele conhece a Silvia Rodrigues, uma advogada objetiva e bem-sucedida, com quem acaba se envolvendo em um romance tórrido, logo aplacado pela realidade do cotidiano de uma vida enclausurada num apartamento junto aos filhos da advogada. O tímido Marcos, um aspirante a poeta que em muito lembra o próprio Gustavo em sua juventude, e Márcia, quem lembra uma Salomé, em malícia e perversão, num jogo de sedução e tentação.

O poeta que abomina e rechaça qualquer resquício de paternidade, vendo-a como fraqueza, um mal a ser vencido, quase uma praga, uma mácula, tolera por conveniência a convivência com os filhos da amante.

Com ironia, sagacidade e uma boa dose de malícia, ornada por metáforas afiadas e frases de um criticismo politicamente incorreto, algo que, diga-se de passagem, Menezes maneja muito bem, fazendo soar adequado o que soa piegas, cafona, clichê em tantos outros autores. Vai prendendo o leitor num jogo verborrágico, sem sentido até, antes de revelar a trama intrincada de sedução, ameaça, violência, loucura e morte. É um encantador de serpentes e nós, essa “manada de depravados”, nos alimentamos da dança hipnótica de suas palavras.

Há uma crítica velada aos “escritores de cachecol” e sua soberba performática tão presentes no meio literário. Ele salienta os versos escritos para encantar os acadêmicos em seus textos aguçados ou aos críticos, esses seres ingênuos e facilmente alimentados pelas migalhas lançadas, assumindo-se detentores de um capital cultural capaz de moldar, criar ou destruir carreiras. Gustavo escancara como são ingênuos, demonstrando como é fácil manipular, ludibriar e convencer quando em posse das ferramentas corretas.

Também ataca os aspectos violentos e censores das pautas identitárias. No fundo, é um macho ressentido. Enxerga a poderosa Silvia Rodrigues, um símbolo de mulher empoderada e independente, como mero e eficaz objeto sexual. Ele a deixa tomar as rédeas, mas o faz por mera conveniência ou preguiça. Tudo narrado de modo sutil, quase displicente, para não se deixar notar. O mesmo ocorre com Márcia, porém se com Silvia existe o sexo como desabafo, como mecanismo de alívio das tensões e conflitos das batalhas nos tribunais, com a enteada tem o vigor da juventude e a desforra da vingança, da rivalidade infantil e desafiadora com a pessoa e a figura da mãe. Percebam a tonalidade machista com que as descreve. É apenas o seu olhar e a sua perspectiva que prevalecem, diminuindo, mascarando, erodindo essas mulheres, condenando-as a orbitarem em torno de sua imperiosa personalidade.

Só dá tempo de levantar, catar as roupas, descer as escadas e correr para o banheiro do meu quarto. Silvia gira a chave da porta da frente. Entra. Finjo que tomo banho. Na verdade, preciso tomar um banho. É questão de vida ou morte arrancar o pólen de Márcia de mim. Vida ou morte, é engraçado trazer isso à tona exatamente nessa hora que espero Silvia me saudar. “Milagre é esse, acordado essa hora”. Que horas são?, “Duas e pouco. Foi até bom te pegar acordado, vou tomar um banho pra você me chupar. Guenta aí. Vai pegar a vodca”. Sim, Silvia. “Agora me chupa”. Chupar. Me reduzi a um tipo vergonhoso de cachorrinho de madame. E sabe, irmãos, não tenho vergonha de estar nesta posição. Quem era eu? Nos meus relacionamentos até anos atrás, chupar uma mulher, eu só chupava se tivesse afim. Se você chupar uma mulher com muita frequência perde o controle da porra toda. Agora falando de quem chupa quem, dá para vocês perceberem a minha disposição em sustentar alguma capitania.

Se a primeira leitura vem o choque, não é esse o objetivo por trás da naturalidade e cinismo com que empreende o seu relato. A primeira parte da novela há um falatório que pode soar cansativo ou desnecessário, mas evidencia todo o jogo de esconde e mostra do narrador – e penso que do autor. É exatamente sob esse alicerce que outras camadas de análise se revelam. Primeiro, há um destinatário, a parcela de “jornalistas” – uso aspas porque não me soa certo dizer se tratar de jornalistas, mas penso que transcende os que estão “diante” de Gustavo, e alcança os leitores e a todos a quem faz críticas –, a quem o narrador direciona seu relato, fazendo um mea culpa, expondo a fragilidade de seu aparente domínio sobre os fatos e narrativas. Segundo, ao sugerir a imprensa e mencionar diretamente a academia, parece apontar para o meio literário, seus mecanismos de dominação – estética, financeira, elitista etc. – e, por conseguinte, o silenciamento das vozes ou do protagonismo dos autores – a outra ponta facilmente iludida. Por isso, defendo a posição de que a novela é permeada em suas camadas de críticas ao status quo, apontando para as ilusões construídas no universo das personagens e nos problemas e questões suscitadas pelos processos identitários, tanto para o bem quanto para o mal, mas que parecem se impor à literatura, questionando o engajamento dos autores, fazendo um juízo inquisitorial sobre certas obras e personagens.

Essa impressão me é reforçada pela aproximação entre Gustavo e Humbert, o narrador de Lolita, clássico de Nabokov. Em comum, são homens bem-sucedidos, de meia idade, ligadas a literatura e em posição semelhante na construção de um relato de suas obsessões sexuais, marcadas por delírios persecutórios, traumas, infidelidade, lascívia e morte. Roberto Menezes brinca com os limites do tolerável, retirando o refinamento do poeta e revelando-o um homem direto, mal-educado e cheio de orgulho, vaidade e manipulação. Nisso difere de Humbert e a sofisticação acadêmica de seu relato. Gustavo não teme revelar-se no seu mais perverso, no seu mais rasteiro.

Outro ponto, enquanto Humbert Humbert usa de esforço para suposta paternidade para esconder os abusos perpetrados sobre sua enteada, Gustavo abomina a ideia de paternidade. Ele não pretende esconder-se sob um manto que lhe traga segurança, mas apenas meter-se entre as pernas da enteada, mesmo que para isso precise lidar com Marcos, quem mais o lembra e aproxima daquilo que abomina na paternidade. A função de tutoria imposta ao pai confirmada na projeção que faz em seu encontro inicial com o rapaz, encurvado sobre um caderno, caneta na mão, rabiscando versos, tal qual fazia em sua adolescência e juventude, ou nos olhares desconcertantes que lhe lançam entre as paredes do apartamento, desconcertando-o. Há atração na repulsão e confusão na semelhança. Aqui, temos o filho, fetos não abortados, moldados à imagem e semelhança do pai, rejeitado pelo pai que não o reconhece. Um exercício feito por Gustavo ante o leito de morte do pai e em relação a Marcos violado por sua recusa, destruído pela sua ânsia de destruir a própria imagem.

Todo sucesso exige sacrifício, demanda sangue, e Gustavo dispõe-se a derramá-lo. Sua mente confunde o real e pouco a pouco vai mergulhando-o numa intrigada trama. Não teme erguer o cutelo para o sacrifício do filho. E o que é o filho? Uma projeção de si? A sua obra e legado? O seu próprio relato? Ou cada de um de nós, seus espectadores, alimentados pelo fascínio que nos causa, abraçando a repugnância de suas palavras, acatando seu jogo de acusações e metáforas politicamente incorretas? Somos nós, os que corramos diante de suas tiradas, satisfeitos com as migalhas que nos oferece? Somos nós, essa manada de depravados e doentes?

Com astúcia, Roberto Menezes mais uma vez, e penso que com mais potência, nos entrega além de boa literatura, uma boa reflexão sobre seus limites, seus comprometimentos e saliente, sobretudo, para a sua incômoda liberdade. É como se nos dissesse que a única regra, é deixá-la imersa no caos.