15 de fevereiro de 2019

O tempo e seus afluentes: a poesia de Wanda Monteiro

Na poesia de Wanda Monteiro o tempo tem muitos afluentes. Tempo-líquido que excede as banalidades das horas, dos calendários e a concepção linear de passado, presente, futuro. O tempo se torna pensamento e se dilata em suas incontáveis dobras. A poeta cria percursos líquidos na corrente da memória. O rememorar ganha dimensão criadora, em um salão de silêncios, entre os pedregulhos do passado. Uma luta contra as sobras e as sombras que nos apavoram.

“erigir do tempo / pretérito leito / adoecer de lembrar / quedar-se em silêncio / de surda ausência”

“Adoecer de lembrar” é um modo poético para falar dos incômodos da memória, da dimensão vivida composta pela experiência com diferentes passados. Lembrar é ato vigoroso que nos faz reviver o que foi vivido, nos dá segurança psicológica e estabilidade, mas é também desenterrar incômodos e calafrios indesejados. Assim, o livro segue pelos afluentes que cria.

“regressar a corrente / do tempo / reter tudo que nele corre por palavras / ler as horas de sua líquida linguagem / escutar a ressonância de suas claridades / de seus escuros / pela escrita transver o curso desse rio”

A partir do que nos diz a poeta a palavra é essa ponte no tempo, esse chão frágil que pisamos para ver, transver e sentir a materialidade de suas ressonâncias. A palavra é o lugar que nos faz perguntar: qual o tempo da poesia? O que a poesia faz com o tempo? Wanda Monteiro faz uma celebração dessa matéria volátil que inventamos como uma grande ficção, o tempo humano.

“o corpo é esse rio / cuja nascente e foz / disputam a força / o espaço / o tempo e as profundidades / no centro de um coração”

A poesia de Wanda Monteiro tem a capacidade de criar abrigos e espaços bonitos – antídoto que penetra a carne e se estende pelos veios, tecidos e estruturas corporais, ganha o território sensorial, o imaginário e nos faz perguntar se retemos o tempo ou se gozamos o movimento.

 

***

 

Somos um frágil equilíbrio de vida - líquida e efêmera - ancorada no olho do sol.

 

há quem diga do corpo - de sua concretude

mas o que há é liquidez

mais de mil partículas - mil núcleos - mil esferas

fluindo nesse rio andante

na disputa  e na defensa

pelas mesmas artérias - mesmos veios

numa permanente luta de vida e morte

 

há uma força que lhes une e desune

lhes funde e aparta

 

o rio esse denso corpo que mergulha em si

pesado demais para chover

precipitar-se no ar

 

o corpo esse rio de sal e sangue

lento de correr que mal sossega - mal respira

ilhado de vento e vazio

 

há quem diga do corpo

de sua agudeza em mirar

mas o que há é miragem

centrífuga ilusão de ser

a refluir no verbo

 

o corpo é esse rio

cuja nascente e foz

disputam a força

o espaço

o tempo e as profundidades

no centro de um coração

 

***

 

o tempo fala ao teu ouvido

palavra-precipício

rasga teu pensamento ao meio

abre fina fenda

funda – escura

tira-te o fôlego

faz tua boca escassa de voz

podes ouvir os passos das palavras em fuga

o ranger de seus ossos ferindo o deserto do teu peito

 

é tudo tão silêncio em teu chão

e tu não sabes que o poema morreu

 

***

 

regressar a corrente

do tempo

reter tudo que nele corre por palavras

ler as horas de sua líquida linguagem

escutar a ressonância de suas claridades

de seus escuros

pela escrita transver o curso desse rio

 

a palavra – o caminho – a linha

ao desalinho dos sentidos

 

escrever - silente exercício

de viver a solidão do pensamento

 

***

 

ao esquecimento

o tempo não resiste

 

a memoria guarda  o presente

na mesma tessitura do passado

 

reter o presente

dele ter imediata consciência

uma impossibilidade humana

 

viver é um tudo de lembrança e espera

 

***

 

tu que habitas essa ilha de memória
margeando passado

nessa terra de parto
vida
e
morte

olha
procura por debaixo das coisas miúdas
os sentidos partidos ao meio pelo tempo
recusa a morte

corrente-leito-de-espera
do rio que já não é
aceita as manhãs
do rio que será

o agora não é chegada
é partida

 

 

Wanda Monteiro, advogada, escritora, uma amazônida nascida à margem esquerda do rio Amazonas no Pará, tem seus textos publicados em várias revistas literárias, virtuais e impressas, tais como: Acrobata, Diversos Afins, Gueto, Ruído Manifesto, Mallarmargens, Zona da Palavra, Intacta Retina, Relevo, In Comunidades, LiteraturaBr e outras. Atua como colaboradora em vários movimentos de incentivo à leitura no Brasil. Obras publicas: O Beijo da Chuva, Ed. Amazônia, 2008; ANVERSO, Ed Amazônia, 2011; Duas Mulheres Entardecendo, Ed. Tempo, 2015; Aquatempo, Ed. Literacidade, 2016. A LITURGIA DO TEMPO e outros silêncios, 2019, Editora Patuá.