14 de fevereiro de 2019

a viúva

não posso nomeá-los. nomear os mortos é violar sua memória. a morte é, ela própria, inominável. mas o que mais tenho feito, senão estuprar a memória de todos os meus entes queridos que se foram? as lembranças, com o tempo, embotam, transmutam, confundem-se; ora o que foi de um passa a ser o do outro, ora o que senti por um homem deixa de pertencer à lembrança dele para transmigrar para o rosto de um outro rapaz, tão juvenil quanto o primeiro, que nem tão fresco era, pois o conheci depois, já maduro, fios brancos, e chupei todo o seu sumo. eu chupei o sumo de todos os mortos, esses. envelhecer é viver um palimpsesto de saudades. tenho saudade de um em especial. não paro de sonhar com ele. não sabia, quando vivo era, que o amava tanto. naquela cidadezinha provinciana em que vivíamos, ele era diferente. tinha carro, bebia bem, tocava baixo com palheta e estudava medicina na capital. era isso, ele morava em são paulo. só o tínhamos no final de semana, e ele era muito querido, e dividir as atenções dele era meio difícil. menos para mim, que também estava prestes a sair da cidade, do que para outras, que ali ficariam eternamente aguardando o fim de semana para beber cerveja quente no meio da rua e encontrá-lo. eu o encontrei, mesmo, depois que ele morreu precocemente. ele é o morto que transpassa, precede e avulta todos os outros. agora eu passo dias sonhando com ele e nesses dias em que sonho lembro aquela transa que não deu muito certo. mas os amassos eram maravilhosos, e como ele deixou de existir para parar de dar esses amassos em outras mulheres? e quem terá sido a mulher eleita que o perdeu mais do que eu? coitada dela, tenho pena, ele era especial. nunca tive ciúmes. tem também o dono daquele restaurante... morreu num átimo. mas tem outro, o meu ex-marido. hoje mesmo me peguei dizendo: ai que saudade do a... mas parei. nomear os mortos é um desrespeito. no cemitério, a inscrição do nome, a estrela com a data de nascimento e a cruz indicando a data de morte torna esses mortos todos iguais. justos são os cemitérios de cruzes, os de outros países. os nacionais têm anjos e madonas. mas são todos iguais, os cemitérios, as sepulturas e os mortos. de repente na minha cabeça passam a ser todos iguais. até meu avô passou a ser igual ao estudante de medicina e o meu ex-marido e o dono do restaurante. e meu avô era o maior morto de todos, meu avô-bebê. eu estou envelhecendo e na medida em que vou elencando esses mortos estou morrendo também. cada lembrança é uma petite mort, um gozo pleno. estou viva e hipersexualizada com a morte dos meus homens. esses, que se inscrevem na minha memória em palimpsestos e logo não me deixarão sequer dormir. eu sou assim, a viúva de muitos mortos, uma mulher que agora tem a vagina seca e a imaginação fértil de lembranças. enfim, sou apenas uma mulher que tem sonhos e profetiza. eu anuncio grandes perdas, a mulher que ainda tem muito a perder sou eu mesma.