15 de janeiro de 2019

Enterro (um conto fantástico)

Era terça. Chovia aquela pancada do verão. Fazíamos amor, daquele jeito que ele mais gostava: de lado, me pegando por trás. Eu não via o seu rosto, as contrações da face, os espasmos dos olhos, mas imaginava, e isso me excitava. Quando o telefone tocou, no entanto, corri para atender, sem ouvir as queixas do meu marido pelo sexo interrompido. Era a minha irmã mais nova, com a notícia que eu temia havia algum tempo: “Papai morreu”.

Avisei, calma, a Luís. Fizemos rapidamente os preparativos, colocamos a mala no carro e fomos até a capital, onde meu pai sempre residira. Morávamos em São Carlos, éramos legítimos interioranos, meu marido e eu, ainda que eu tenha vivido boa parte de minha vida em São Paulo. Não gostávamos muito daquela cidade grande, que evitávamos olhar de frente, com um respeito profundo por seu cinza escuro. Mas agora tínhamos de olhar para a cidade e para a morte.

Não chorei. Chegamos à capital e minha irmã já tinha preparado tudo. Deixamos a mala na casa de papai, agora vazia, mas ainda impregnada com o cheiro de seus cigarros, que insistia em fumar mesmo doente, e rumamos ao velório, mas, no caminho, mudei de ideia e disse que gostaria de flanar um pouco pelo bairro. Luís entendeu e nos separamos; eu disse que não demoraria mais do que duas horas.

Naquele bairro, havia um morro razoavelmente inclinado com uma Via Sacra. Cada uma das 14 estações era pintada com a respectiva imagem do martírio de Jesus. Subi até a Ressurreição, uma grande estátua do Cristo Redentor. Rezei sem muita convicção e, na descida, detive-me na sexta estação, em que Verônica enxuga o rosto de Cristo. Meu nome é Verônica. Pensei se poderia ter limpado, alguma vez, o sofrimento do rosto de meu pai. Pensei, ainda, lembrando as imagens de suplício, como o martírio do Senhor e seu êxtase eram sensuais, como eram sensuais também outros santos flagelados, como São Sebastião, crivado de flechas. Mas quanta bobagem, quanta bobagem.

Então, muito surpresa, dei de cara com Ulisses. “Verônica”, ele disse. E nos abraçamos.

Ulisses era o meu amor platônico desde que eu tinha 11 anos, e Luís conhecia muito bem essa história. O rival compareceu ao velório porque me tinha em grande estima, como amiga. Nunca me amara como mulher, mágoa que deverei guardar para toda a vida. Sabendo que eu vagava, teve a ideia de visitar a Via Sacra, imaginando-me lá. De fato, poucos me conheciam como Ulisses. Na juventude, subíamos algumas vezes até a sexta estação. Divertíamo-nos, na adolescência, ali pelos monumentos do bairro, inclusive no cemitério, cujo muro pulávamos, à noite, para demonstrar valentia. Depois de trocarmos algumas palavras sobre essas lembranças, voltamos juntos ao velório.

Tudo transcorreu brevemente. Olhava o meu pai no caixão como se fosse um estranho. A mão direita, posta sobre a esquerda, exibia um anel de ônix, conhecido como “anel comendador”. Ele estava extremamente magro e lembrava as feições de Luís. Como eu nunca havia reparado naquela semelhança? Estranhamente, Ulisses tinha um anel igual. Coisa de moda? Certamente. Quanto a meu pai, de qualquer forma, ele tinha mesmo, em vida, sido uma espécie de estranho, um estranho que dava palpites em minha conduta, pouco mais do que isso. Eu nutria uma grande carência dele. Mas agora isso era passado. Não havia mais como conversar com ele sobre isso, como nunca houvera.

Não havia muita gente no velório. Os irmãos e irmãs, ao todo sete, e alguns poucos sobrinhos. Amigos não tinha. Era reservado e desconfiado de toda a gente. Por isso, não era muito querido. O ar abafado e poluído empestava a atmosfera moribunda. Luís e eu ficamos constrangidos por causa da presença de Ulisses. Mas ele estava lá, depois de tanto tempo, e eu estava contente de havê-lo encontrado.

Ao velório também compareceu um primo distante, meio amalucado, que usava a mesma loção pós-barba de papai. Ele me disse: “Olha o que eu ganhei de presente!”, esticando o pescoço para que eu sentisse. Ao perceber minha perfeita confusão e até uma lágrima se formando em mim, em meio a espasmos de riso, ele se desculpou em monossílabos ininteligíveis e se afastou, prometendo voltar para o enterro de forma “mais apropriada”. Sua partida foi um alívio. Mas, por qualquer razão, após sua partida, não o tirava de minha cabeça, e quando olhava para Ulisses via o primo meio embaralhado em sua imagem.

Comentei com minha irmã mais nova sobre a loção e o primo. Sabendo que eu ficaria no apartamento de papai, pois declinara de sua hospitalidade em troca de um pouco de recolhimento, ela me disse para eu não me preocupar; que ela, antes ainda do enterro, se livraria daquela loção dando um rápido pulo no apartamento, para que eu não caísse na tentação de a ficar cheirando como a uma flor do mal, e que tiraria de lá outras coisas que pudessem me deixar abalada. Ela era realmente muito prestimosa.
Finalmente, enterramos o defunto. Luís e eu voltamos ao apartamento de papai. No caminho, a pé, ouvimos numa casa um casal fodendo pela fresta de uma janela. Detivemo-nos e perguntamo-nos, quero dizer, Luís perguntou, se deveríamos espiar. Eu respondi: “Que absurdo! Meu pai acabou de morrer, eles deviam sentir vergonha, eles não sabem, mas deviam, e muito mais ainda você! Só falta você querer me comer na hora em que formos dormir!”

Mas ainda havia muito o que acontecer. Nesse mesmo caminho, aparentemente tão curto, entre o cemitério e o condomínio de papai, uma cigana agarrou o meu braço e disse que eu passaria por uma situação inesperada. Luís empurrou a cigana e cuspiu na sua direção, dizendo que ficasse longe de mim. A cigana lançou impropérios e uma praga: “Vocês nunca mais vão foder em paz”.

Meu marido e eu estávamos cansados da viagem e eu, particularmente, muito triste com tudo aquilo. Deitamo-nos na cama de papai, a única disponível no apartamento. Fazia um calor insuportável, ficamos apenas com as roupas de baixo e com um ventilador velho rangendo nos nossos ouvidos. Moscas voavam à nossa roda. As paredes, cor de gelo, que eu achava de extremo mau gosto, pareciam rimar com a morte recente. Ficamos de conchinha, meu marido me abraçava. Comecei, finalmente, a chorar, mas de leve, sem muita convicção, se posso dizer assim. Mas quando finalmente eu explodi em soluços, senti a mão do meu marido puxando minha calcinha com fúria e assolando minha vagina com seu membro duro. Minha nossa, que ideia, fazer sexo numa hora dessas! Mas já estava toda molhada. Ele metia com vontade e eu fui gostando cada vez mais.

Aos poucos, fui perdendo a noção de onde estava e de qual era a minha real situação. Na cama de papai deus meu o que vão pensar mas é claro que ninguém vai pensar nada ninguém vai saber isso mete mais fundo muito bom mesmo acho que nunca tivemos uma foda tão incrível o que as minhas amigas iam achar que inveja eu imagino olha como eu estou molhada gozo jorros e jorros do meu líquido feminino enquanto ele esfrega meu clitóris será que papai esfregava o clitóris de mamãe será que faziam sexo oral oh meu deus o que mamãe iria pensar realmente muito gostoso eu não poderia morrer sem esta foda mas e agora o que é isso? por trás mesmo? ele está me sodomizando acabou de gozar na minha boceta e agora me enraba que potência eu não sabia que esse homem com quem eu durmo e meto há sete anos era capaz de coisas assim mas será que papai comia mamãe desse jeito? certamente ele ficou muito sozinho depois da morte dela isso finca fundo agora goza que eu estou gozando de novo.

Tive orgasmos múltiplos ao mesmo tempo em que pensava que meu marido parecia mais peludo do que era, vendo seu braço. Peludo como... papai. E usando o anel dele! E, de repente, senti o cheiro da loção que minha irmã jurara ter retirado do apartamento, a loção que meu primo veio me mostrar no velório.

Quando me virei para olhar meu marido nos olhos e tentar entender melhor o que estava acontecendo, por que aquele tesão numa hora tão mórbida, por que nunca tínhamos trepado assim, dizendo: “Luís, por que você está usando a colônia de pa...”, não encontrei ninguém na cama. Que estranho! Ele não poderia ter se levantado tão rápido. O quarto todo estava vazio. Perplexa, comecei a rir um riso demente. Então ele entrou pela porta me trazendo uma bandeja. “Olha o café da manhã, dorminhoca! Você está melhor? Dormiu pesado, isso é bom”. Eu ainda sentia em mim o cheiro do pós-barba de papai enquanto o sêmen escorria da minha vagina e do meu ânus, enquanto meu corpo repousava sobre um lençol muito molhado dos meus gozos e ainda quente. Luís pareceu não entender a minha cara de confusão. Tomei o café da manhã, e, envergonhada, perguntei: “Luís, você está sentindo o cheiro da loção de papai?”. Ele me respondeu distraidamente que não, mas respondeu: “Olha só o que o Ulisses me deu”. Era o tal anel, idêntico ao do meu pai. Que mau gosto, pensei. Por que Ulisses faria aquilo? Tentei firmar a vista no braço de Luís para ver se estava mais peludo. Mas perdi os sentidos.

Quando voltei a mim, sentia-me exausta. “Querida, acho que é hora de voltarmos para São Carlos”, disse-me Luís, olhando-me, preocupado. Mas eu não queria deixar Ulisses mais uma vez contemplando uma falsa Verônica de Via Crucis - sozinho.