28 de janeiro de 2019

AMOR, FOMES E OBITUÁRIOS

Zygmunt Bauman atentou para nossa falta de fôlego para projetos de vida, para aqueles compromissos longevos, de anos e anos. Tudo passa numa velocidade maior que a suportável, em sua liquidez contínua, profunda e intensa.

O protagonista de A mulher faminta (Moinhos, 2018), romance de Tiago Germano, é um homem desses tempos líquidos, um remanescente sólido tragado pela aridez de seu tempo. Um homem sem pertencimentos, tragado pelas emoções com as quais não sabe lidar e pela intensidade que mesmo as coisas mais insignificantes podem adquirir.

Ele, um jornalista que escreve obituários, testemunha a morte do jornalismo tradicional, transita pelos espaços descolados da cidade e frequentado por hipsters reféns da mesmice conformada ante o esforço de em ser diferente. Lá ou cá, um estrangeiro, um bisão seguindo a manada rumo ao abismo. Nada ou ninguém o motiva.

Sua bolha é estourada por uma cadeira quebrada, quando esbarra em Lorna, a novata na redação. Logo, envolvem-se. E tudo iria bem, não fosse por Mayra, a DJ por quem foi apaixonado e o abandonou, encaixotada no quarto de hóspedes entre lembranças e papelão. A sua ausência, para além do vazio, traduz-se em onipresença. Mayra é o bode expiatório para sua existência apática. Lorna não consegue suportar que aquela mulher ainda esteja entre eles; por sua vez, ele suporta por ter Lorna. A tensão entre eles sustenta toda a trama.

Somos alertados ao abrir o livro que há um cadáver naquele apartamento. O interfone insistente e a demora em atender a porta é a convocação para estarmos alertas.  Mais do que alguém morto damo-nos conta de que todos estão morrendo. O protagonista que escreve obituários enquanto assiste a morte dos jornais tradicionais, decompondo-se ante o luto do fim de seu relacionamento; Lorna, traumatizada pela perda do pai, levando-a a sepultar seus desejos artísticos; Mayra, dada como morta à primeira menção de seu nome. Toda a narrativa é impregnada pelo tom de obituário.

Se há algo morto, há também algo vivo, a fome contínua, quer reacendida a pinceladas, no caso de Lorna, quer em palavras, no dele. Nesse meio tempo, devoram-se – num quarto vagabundo de motel, na escadaria do prédio, no quarto de casal ao frio do ar condicionado. Há sempre urgência, necessidade mútua, diferentemente de como era com Mayra.

Ele floresce enquanto ela definha. Lorna mergulha em desânimo, com traços mais obscuros e corpo cada vez mais magro. Ele, num processo inverso e simultâneo, deixa o mesmo estado em que ela se encontra. A cada página datilografa, Mayra vai se distanciando, até que emerge uma vez mais.

Tiago usa a cidade na tentativa de nos distrair, de acenar para vida que segue lá fora. E da varanda podemos ver o mar e quase sentir o salgado na boca e sobre a pele. Mas é possível desvencilhar-se do mistério?

Cheguei ao final do livro, ouvi a canção que Lorna cantarolava no carro e, ao vagar pelo apartamento, tive a ligeira impressão de que um cadáver me aguardava em algum dos cômodos.