10 de dezembro de 2018

“Tríptico vital”: a grande aventura humana por Mariana Basílio

Falar de um indivíduo, do seu nascimento até sua morte, é narrar uma jornada que é a própria aventura da humanidade no solo terrestre, desde os primeiros grunhidos – do bebê, ou do primeiro hominídeo – até o fim de tudo. Tríptico vital (Patuá, 2018), de Mariana Basílio, cria um modelo de evolução humana que, como o nome do livro aponta, se divide em três partes: “Da existência” (primeira infância, adolescência e primeiros anos da vida adulta), “Da experiência” (maturidade) e “Da extensão” (velhice e morte). E como um tríptico, que é a junção de três superfícies pintadas e colocadas uma ao lado da outra com tema geralmente sacro, é impossível compreender uma das partes sem “enxergar” as demais. Tríptico vital é um poema longo, um épico dos nossos tempos e do nosso solo tropical, afinal, “Eis a pós-modernidade, dizem.”

O Tríptico de Mariana é uma rapsódia em que se constroem lado a lado citações, estribilhos, listas diversas (de revoltas populares e religiões, por exemplo), mas que se consubstancia na originalidade da autora, que escreve com paixão, criando metáforas límpidas, que lembram uma dicção cabralina. É polifônico – o eu lírico está sempre em uma posição diferente, criando as múltiplas vozes do poema e tem influências diversas, como de artistas como Hilda Hilst, Herberto Helder, T. S. Elliot, Allen Ginsberg, Dante, Manuel Bandeira e Mário de Sá-Carneiro entre eles, sem se deixar amarrar a uma poética que não seja completamente autoral e calcada numa forma muito própria de enunciar poetizando.

“Da existência”, por exemplo, começa com as seguintes estrofes:
Na primeira desobediência humana./ No fruto de uma árvore proibida./ Do mundo, coroamos argutas aflições. // Cantares de um canto sem pranto. Cantares de um gorjeio sem portento.

“Cantares” remete a Hilda Hilst, mas também a tudo o que é cantar no mundo. O livro-poema é dedicado à autora, mas o gancho para por aí. Mariana se afirma, assim, como poeta madura e independente de modelos estilísticos alheios, nos seus 29 anos de idade, e seu livro já nasce premiado: é resultado do projeto paulista ProAc e finalista da residência literária do Sesc em 2018.

Logo no início do livro – na segunda página, por exemplo – podemos ler sutilezas poéticas extremamente belas, como: No epicentro, eclodiram polo norte e polo sul,/ Encadeando mansuetudes tectônicas das/ Tensões e tessituras do amor.

Mariana ousa ao tratar de sexo e gênero na obra – Na cópula que se arranca/ Dos corpos,/ Rastejam ouros/ Uns nos outros./ Penetrando o pênis no Buraco da vagina,/ O pênis no/ Buraco do ânus,/ Inteiros dialetos/ Da boca –/ Úmida por fruição –/ Alcançam o fundo do mar./ Estimam alto o seu par –/ Sexo sobre sexo. Mãos sobre mãos. – O trecho está no começo do livro, no big bang da concepção, e volta a isso mais tarde, passando por uma descrição poética do corpo da mulher como receptáculo e fonte de vida. Essa primeira parte do tríptico demonstra a beleza da formação de um embrião na barriga da mãe, o nascimento e a primeira infância com uma leveza que transcende o que pode parecer óbvio. É essa elocução que nos ganha logo de cara. De quebra, a autora ousa: Menos família e sociedade, que aguardam/ Insanos a racionalidade desse instante./ Menos falácia e egoísmo, que vestem/ Vias cruéis do reinante capitalismo. Não há vida que já não seja de acordo com papéis pré-estabelecidos, afinal de contas.

Ainda na primeira parte do Tríptico, uma estrofe de rara beleza nos assalta: Cavalos reinavam nos limites do céu –/ Reluziam em vielas inabitáveis./ Relinchavam às páginas indefinidas,/ Acima do coral de indigentes –/ Cavalos reinavam nos limites do céu.

Na estrofe seguinte, que começa com o verso Palavras singravam e simbolizavam o ser, a que se seguem versos feitos de palavras avulsas em fluxo de consciência e sentenças como Apenas vultos passageiros, dizem – a metáfora do humano como árvore nos cativa, sendo repetida em estrofe posterior: Há um abismo que se funde entre nós/ Há um abismo que se funde entre os nós,/ Determinando a idade de uma árvore./ Os anéis do tronco como espessuras/ Cíclicas, espessas em lágrimas e / Pedras que atordoam as previsões.

E o fim deste primeiro painel termina com a pessoa apresentada alcançando 29 anos, atordoando, de novo: Porque sou e não sou./ E vago entre os muros.

O segundo painel (“Da experiência”) já anuncia a transcendente dinastia humana, Cada vez menos e cada vez mais/ Inerente à finíssima linha de amebas,/ Dependuradas nos ares das avenidas. É aqui que começam citações e influências como em: Riobaldo esparramado no chão./ Riobaldo, o menino e seu cão., com Rosa e Graciliano. A política, institucional ou popular, está em toda a segunda parte, talvez começando nestes versos antropofágicos: Das Entradas e Bandeiras ao carnaval, das/ Missões jesuíticas ao tráfico, uma navalha/ finca o Senado. Lá se vão as matérias-primas/ Ressignificar o Pau-Brasil transmutado –/ Crescem covas e contas: é tudo doirado! O eu lírico ainda enuncia aquecimento global, patriotismo, xenofobia, terrorismo e palavras que se dividem em tópicos como três vales (os três poderes), dez fossos (entre eles, tecnologia e escravidão) e quatro esferas (reforma agrária, distribuição de renda, cultura e educação).

O nosso personagem épico chega aos 43 anos. Aqui, repete um mantra: Eu estarei embaixo da terra e/ Tu caminharás ao sol. Agora começa a revolta, e O ser sufoca o próprio ser. Fim do segundo painel.

É no terceiro – “Da extensão” – que a pós-modernidade grita mais alto. A iminência de morrer é uma constante e leva a versos belos; por exemplo: É sempre a terra. O túmulo. O sepulcro.// Maçãs dispostas na jovialidade./ Uvas pendidas na maturidade. // Mas havia rigor. Havia essência./ Um borbulho transbordando o copo,/ Atravessando o próprio impulso.// Tudo morre no seu nome./ Tudo morre no seu tempo.

Um epitáfio imaginário, uma lista de bichos que são nomeados apenas como bichos, mesmo, como: O bicho que morre de sede; as já mencionadas listas de religiões, além de revoltas que passam pela Inconfidência Mineira até a Intentona Comunista de 35, compõem a deterioração dos corpos e a explosão das mentes. Assim é nas seguintes estrofes: Os ossos sequinhos de tão frágeis/ Cavoucando as costas dentro da/ Madeira, as calçolas amassadas,/ O ranho ainda escorrendo –/ Eu dentro do eu, e novamente.// Cochichando na confusão da/ Hóstia recovada na garganta,/ O coice ainda escorando –/ Nós dentro de nós, e novamente.

Quase ao final do poema, o eu lírico repete um estribilho entre versos impactantes, e que pode ser uma síntese de todo o livro: “Come de mim essa tua fome!” – antropofagia que sinaliza para o fim da “morte de saias”, decidida a morrer, rumo a As horas do fim, ponto final do livro.