6 de junho de 2018

Um "pessach" às avessas

"Sorte", de Nara Vidal, é um livro que galvaniza o leitor, não apenas pela temática, mas pela destreza da autora na construção de linguagem cristalina e repleta de imagens, cuja estrutura formal enfeixa a narrativa num ritmo e poesia internos

Um livro metafórico em todos os sentidos, em que a autora transpõe os domínios do realismo para instaurar um trânsito de transcendência, onirismo e magia, ao tomar como pano de fundo a fuga de uma personagem da situação de fome da Irlanda no início do século 19.

Acreditando nas promessas de um novo eldorado no Brasil, o "Hy-Brasil" (aqui simbolizado como uma ilha movediça) vai para o Rio de Janeiro e quando chega, percebe que foi vítima de mais uma cilada, quando o estado brasileiro, para atrair força de trabalho para suas terras,  para uma economia incipiente, eram tratados  como escravos, ou também submetidos a outros degredos, como enviar os homens para as guerras travadas no Cone Sul, como o conflito cisplatino, que opôs Brasil e Argentina. A sedução do estrangeiro que fugia de condições miseráveis em seu país, aqui se transformava em degredo e sevícia, uma ilusão abortada ao chegar à nova terra. 

Eis uma obra sobre a má sorte dos que precisam fazer uma travessia para fugir ao deserto em que vivem, mas acabam pro serem lançados numa outra aridez, além da territorial e geográfica, a psicológica e a da perda da identidade. "Sorte" mapeia esse passivo íntimo que atinge tanta gente desde os primórdios da humanidade: deslocamento, perdas, solidão, desilusão, enfrentando a opressão tanto político quanto religiosa, pois, aí tbm reside um grande simbolismo, pois a fuga de Margareth e sua família, vivendo uma outra insularidade, além da pobreza na Irlanda, a moral e a afetiva, pois aí é movida pelo castigo, por estar grávida, tendo que abandonar filho tão logo chega ao Brasil, um destino comum a tantas mulheres estigmatizadas e  proscritas pela igreja naqueles tempos de pseudo-moralismo e controle rígido da moral e dos costumes, tendo aí as freiras consumando a tortura maior, que é a venda dos bebês.

Um livro que aproveita bem a mitologia em torno não só desse refugiados de um tempo tão distantes - mas tão análogos aos sírios de hoje,  que sofrem e morrem nas águas do mundo e não sabem o que vão encontrar do outro lado - porque são expulsos de suas terras pelas contingências que os humilham, amedrontam e apequenam e os aguarda países e realidades movediças e a imprevisibilidade da sorte, a loteria do "allea jacta est". Essa travessia do Atlântico que, durante 36 dias, colocará em risco a vida de Margareth e suas irmãs Martha e Mary, e também seus irmãos, num percurso de doenças e morte, é o pano de fundo para um delicado questionamento sobre o destino, de pessoas e nações, que em suas expriências traumáticas, vivem sempre premidos pelas circunstâncias pessoais e história a viverem seus conflitos e na tentativa de fugir deles, numa espécie de pessach às avessas, fogem de um cativeiro para cair no outro. 

Uma narrativa sóbria, elegante, sem derramamentos, pontuada por uma história de crueza poética, em que tempos cronológicos e psicológicos estão são habilidosamente trabalhados pela autora em simbiótica relação, conferindo densidade e ao mesmo tempo leveza à novela. "Sorte", em sua impactante verdade e com suas sutilezas estilísticas,  vem traçar um roteiro ficcional sobre a gênese do nosso processo civilizatório, ao tocar em questões ligadas à vida, à morte, ao sofrimento dos excluídos, enfim, sobre um apartheid e sobre a desterritorialidade de uma família dividida nessa itinerância e nesse desterro, culminando num simbólico e dramático epílogo às margens do mí(s)tico rio Pomba, o rio que atravessa a zona da mata de Minas e como diria um poema de João Cabral, "esse rio/ está na memória/ como um cão vivo/ dentro de uma sala." Na memória ficam seus personagens e sua luta par fugir ao esquecimento, como essa Mariava, escrava que tem seu papel na história, como repositório desse imaginário.