20 de fevereiro de 2018

Entrevista com Maria Valéria Rezende

Vivian de Moraes bate um papo com a artista premiada e militante da literatura feminina Maria Valéria Rezende numa entrevista em que a escritora revela diversas facetas, desde a sua característica de escritora “periférica” até o de organizadora do importante e recém-realizado encontro do “Mulherio das Letras”. Aqui, ela fala também de projetos literários em andamento.

 

Maria Valéria, gostaria que você contasse um pouco sobre o que foi o encontro do Mulherio das Letras em João Pessoa (PB), que reuniu cerca de 600 mulheres que fazem literatura no Brasil. Foi preciso ter muita dedicação para envolver essas mulheres escritoras, ilustradoras, tradutoras, performers, num local à periferia do eixo Rio-São Paulo- Minas?

Maria Valéria: Nosso ponto de encontro “periférico” (a depender do ponto de vista, é claro...) não pareceu ser uma especial dificuldade, pelo contrário, muita gente tomou a oportunidade de vir a João Pessoa como uma motivação a mais para participar. E há várias que partiram querendo se mudar para cá! Afinal, estamos bem mais perto da África, da Europa, Do Caribe, da Amazônia, do Sertão, da América Central e do Norte! Aqui é o meio de um mundo, geográfica e culturalmente! Mas houve, sim, gente que reclamou que o Encontro era “muito longe", reclamação que nunca ouvi sobre eventos feitos lá no eixão... embora a distância seja a mesma nos dois sentidos... mas certamente, otimista que sou, foi um passo adiante para encurtar as distâncias criadas pelos preconceitos. Se tivemos de trabalhar feito loucas, e é verdade, foi sobretudo por causa do processo de criação do Encontro: de trás pra diante... primeiro constituir um “público", de milhares de mulheres ligadas às letras e muitas multiartistas, que foi propondo o que gostaria de fazer, e só então tratar de organizar um programa o mais abrangente possível, e daí buscar parcerias e recursos indispensáveis... os principais deles sendo as próprias participantes!

O evento gerou algum manifesto ou documento? Qual a importância de se dar visibilidade às mulheres no meio editorial ou tangente a ele?

Maria Valéria: Não era intenção do encontro gerar nenhum “documento" nem “tese vencedora" ... apenas criar uma oportunidade para nos vermos, nos comunicarmos, sabermos quantas e quem somos, perceber os consensos entre nós e os dissensos que permanecem pedindo mais debates, e sobretudo gerar ânimo e parcerias. Boa parte dos frutos do I Encontro já estão acessíveis no site Mulherio das Letras, que vai permanecer, esperamos, e ser alimentado pelo que se vai produzindo. Mais do que um evento, isso foi um momento de um amplo movimento que está se espalhando em vários núcleos locais, regionais, no país e além-fronteiras e creio que não vai mais parar! Preparemo-nos que há muita coisa linda pronta pra sair das gavetas do Mulherio!

 

Você tem um enorme carisma e grande capacidade de liderança. Você acha que isso contribuiu para o sucesso do evento, desde o começo?

Maria Valéria: Meu papel foi só fruto de uma casualidade. Por causa de uma premiação fiquei de repente em evidência, andei viajando e encontrando muita gente, as conversas foram se multiplicando, entre muitas de nós, e as ideias surgindo coletivamente. Apenas, por acaso, quando dividimos tarefas práticas pra por o movimento a andar, coube-me a tarefa simples de criar o grupo Mulherio numa rede social... e o aplicativo tem lá sua linguagem e a coisa aparece assim “Mulherio das Letras 2017 criado por Maria Valeria Rezende", e deu a impressão de que eu criei o Mulherio, quando eu só “criei" o tal grupo pra nos comunicarmos. E uma vez que alguma coisa aparece escrita internet, “viraliza", como se diz, e não volta mais atrás... acabei deixando de protestar, pensando que, se desse tudo errado, a “culpada" seria eu... Mas garanto que o que deu certo e todo o movimento dependeu mesmo dos carismas e liderança de centenas de mulheres incríveis, dedicadíssimas, e cheias de talento!


Como você vê o Mulherio se espalhar para outras cidades brasileiras e até no exterior?

Maria Valéria: Vejo como a prova de que estava na hora de acontecer, a situação estava indicando essa necessidade, e o nome Mulherio das Letras foi só a faísca que acendeu uma fogueira já prontinha... essa chama não vai se apagar mais. Não para queimar ninguém, mas para lançar luz e calor para o que estava relegado às sombras...


Agora vamos falar um pouco sobre você e sua obra. Quando sentiu que tinha maioridade para ser ficcionista? “Quarenta dias” foi o salto que lhe faltava?

Maria Valéria: Nunca “senti" nada de especial, nem decidi ser escritora de ficção. Aconteceu por acaso. Embora eu ache que, como toda a gente, já nasci ficcionista, por que da vida e do mundo a gente só apreende fragmentos e inventa o resto para juntá-los e dar-lhes sentido. E contar histórias é parte necessária da ação de qualquer educador popular, que foi a minha escolha, essa sim, bem consciente. Não tenho uma hierarquia dos meus livros. Cada um é um, não sei se o “Quarenta" é melhor que os anteriores... depende de quem lê, quando lê...

 

Você havia me dito que tinha interesse em escrever uma obra histórica sobre as freiras durante a Idade Média, sobre como elas eram boas latinistas e importantes para a Igreja. Ainda tem esse projeto?

Maria Valéria: Já pesquisei e escrevi, desde 1980, um bocado de textos de não-ficção sobre esses temas. Apenas o texto acadêmico não me dava liberdade de imaginar a subjetividade dessas mulheres, tentar me por no lugar delas e dar-lhes voz. Por isso há tempos venho elaborando um romance sobre mulheres brasileiras do século XVIII, que já devia estar pronto, está quase, mas foi um tanto atrasado pela inesperada agitação da minha vida neste ano! Agora terminar de lixar e polir esse livro é minha prioridade.

 

Você também me disse, recentemente, que preparava um livro de contos. Como está o seu andamento?

Maria Valéria: Acabam de sair as “Histórias nada sérias”, pela nova editora paraibana Escaleras, criada pela escritora e pesquisadora Débora Gil Panteão. E ainda sairá neste mesmo ano, provavelmente, outra coletânea de contos meus.

 

Para finalizar, gostaria de que você deixasse uma mensagem para os leitores e as leitoras do LiteraturaBr.

Maria Valéria: Muito obrigada! Parabéns por serem leitoras e leitores! O tesouro que a gente ajunta lendo ninguém nos pode roubar. Se tivesse que escolher entre ler ou escrever, eu escolheria ler!

MARIA VALÉRIA REZENDE Nasceu em 1942, em Santos, SP. Formada em Língua e Literatura Francesa, Pedagogia e mestre em Sociologia. Dedicou-se à Educação Popular em diferentes regiões do Brasil e no exterior. Vive na Paraíba desde 1976. Em 2001, seu romance “Vasto Mundo” (Ed. Beca), foi re-editado em nova versão (2015, Alfaguara) traduzida e publicada na França em 2017 (Ed Anacaona). Participa do Clube do Conto da Paraíba. Seu romance “O voo da guará vermelha” (Objetiva, 2005) foi publicado em Portugal, França e duas edições em Espanha (espanhol e catalão). Com “No risco do caracol” (Autêntica, 2008), ganhou um Jabuti em 2009, categoria infantil, e em 2013, categoria juvenil, com o romance "Ouro dentro da cabeça" (Autêntica 2012). Escreve ficção, poesia e é também tradutora. Ganhou em 2015 o Jabuti de melhor romance e livro do ano de ficção com "Quarenta dias" (Alfaguara, 2014). Seu romance “Outros Cantos” (Alfaguara, 2016), ganhou o Prêmio Casa de las Américas, Cuba, 2017, terceiro lugar no Jabuti 2017 de romance, e o prêmio de melhor romance no prêmio São Paulo 2017. Participa do Movimento Mulherio das Letras.