De como deflorar palavras
Bendito fruto proibido
Pecado Original
foi Deus ter ousado
deflorar o Caos
Com o poemeto acima, Gabriel Felipe Jacomel inaugura o livro Deflora (Patuá, 2016) e debuta na poesia. Seu primeiro livro é uma violação, mais que uma defloração – estabelece um ritmo de escrita em que várias influências se mesclam para a criação livre de poemas que bebem na fonte dos clássicos e flerta descaradamente com o pop.
As “Polaquices” do livro, por exemplo, pagam tributo a Leminski com o máximo de economia, como na primeira: “faço pouco/ sinto muito”.
Os trocadilhos são constantes e aguçam a curiosidade. Em “(C)ama de leite”, por exemplo. O poema, com quatro estrofes, se amolda tanto à cama quanto à ama. Um dos melhores poemas nessa linha certamente é “Carpo”, por si só uma palavra de duplo sentido, remetendo ao choro ou ao ato braçal de limpar a terra com uma enxada. É o que segue:
meta: formosa
meta morfose
meta lhadora
ética
estética
estica e puxa
metacorpo mata o corpo
a facadas de bisturi
É notável a gama de interpretações possíveis em cada verso. Na primeira estrofe, trocadilhos simples, mais para o lúdico do que para o poético em si. Mas quando enuncia “ética”, o eu lírico dá uma guinada, rimando com “estética”, que tanto pode ser uma escola artística quanto os cuidados com a beleza pessoal, e o “estica e puxa” lembra uma cara deformada por cirurgias plásticas tanto quanto o fazer difícil da arte em todas as épocas. É também interessante ler que “metacorpo” – o que seria? – mate o corpo “a facadas de bisturi”, ou seja, eis o desmonte e o retalhamento do corpo e da arte. O choro e o corte são uma mesma coisa.
Em “Deflora”, como não poderia deixar de ser, há também a incidência de versos semipornográficos, como em “Navalha na carne” – uma menção a Plinio Marcos, peça importante da nossa dramaturgia. Começa assim: “seringueira com quatro laminadas que formam uma boceta/ segue o sumo como um rio [...]”. Ou, em “Contagem silábica”, metapoema pílula: “é contar as estocadas/ da foda perfeita”.
No livro, felizmente para os nossos dias, há muito experimentalismo. Sente-se nele a força da pós-modernidade em trocadilhos que lembram Fabricio Corsaletti (“nem compromissos semanais/ nem consumismos seminais”) e poemas em que abundam neologismos insólitos: “éxtensão”; “e de timplodir/ no me nor vacilo”; “Folianópolis, doce (de) februário de 201?” e até um neologismo da própria palavra neologismo, em “Queima de estoque”: “oferendas/ neolojismo”.
Creio que há três poemas essenciais, em que a força do experimentalismo de Jacomel atinge o ápice: “Da crise”, “Fuso xadrez” e “Serenidade”, e creio que vale a pena nos determos neste:
Serenidade
seassenhora néssidade
sabe o qué sororidade
não sei não sei rir à toa
sei também outra Pessoa
sei não tem necessidade
dentendê como lhe cabe
sei não falo nem po padre
lo que calo pra comadre
O derramamento sibilino do som do poema é quase calmante, e o seria totalmente, se o eu lírico não estabelecesse uma série de desconcertos ao longo dele, com neologismos quase absurdos e o humor vibrante que é o resultado de sua composição em poema. Não é o melhor achado do livro, mas tem o seu lugar entre os melhores, pois a força de Jacomel como autor estreante se apresenta todo nu nesse texto: não perde a piada nem a pitada de um poema que trata do quê? De velhinhas e de segredos? Um eu nosso muito particular, essa sororidade, tão rara nesses dias (ainda), escrita por um homem? “sei não tem necessidade/ dentendê [...]”.
Com Deflora, Gabriel Felipe Jacomel estreia em grande estilo, num livro, no entanto, despretensioso e divertido, ao mesmo tempo que sério, muitas vezes, ou, seria mais acertado dizer, em poemas sérios com tiradas leves, duma língua que se diz no cotidiano, naqueles trocadilhos que tantas vezes nos pegam quando pensamos e que gostamos de repetir em voz alta. É isso: leia Deflora em alta voz para contagiar de desvirginamento o ambiente em que você está. O livro é um convite ao ser humano para se reinaugurar.
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