O peso da vingança e o coração de um homem
Um menino que nem nome tem. Como irmão, é o “Menino”. Os dois testemunham a morte violenta dos pais e são levados a outra família. A busca do mais velho, então nomeado Cristóvão, por vingança. Assim começa a transcorrer a história de O peso do coração de um homem (Patuá, 2017), de Micheliny Verunschk.
Na primeira parte do livro, há uma densa narrativa sobre Cristóvão, o protagonista que ganha aquele nome de gente estranha; Gonçalo, seu irmão também nomeado ali; e os demais personagens da casa. A primeira vítima de Cristóvão é um velho que mora ali mesmo na casa num morre-não-morre. A narrativa é densa porque penetra nas razões desse homem que mata. Mas isso foi uma facilitação para a morte, apenas. É a partir do segundo crime que o coração pesa para Cristóvão.
O peso do coração de um homem não é diferente do peso do coração de qualquer animal. Coração meu, coração de Gonçalo, coração de pai, havia tudo de ser do mesmo feitio que aquele. Mas seria de igual formato o coração de uma mulher? Imaginei que pesasse mais, inteiriço que fosse, sem tantas aberturas e ligamentos, sem essas tripas sem sentido que se emaranham umas nas outras.
Para Cristóvão, era importante saber o quanto pesava o coração de uma mulher porque, durante o ataque à sua casa por homens violentos, quem mandava era uma tal capitã de aparência sinistra: sua pele e seus traços eram jovens, mas ela era completamente encanecida. E aqueles cabelos brancos metiam medo. Foi ela, a “Abutra”, junto com aqueles cinco homens, quem tirou as crianças do lugar chamado “Gritos” e conduziu “Menino” e “Menino” para a nova casa onde haveriam de morar. Tudo sem maiores esclarecimentos. É como se a verdade fosse mais letal que o próprio extermínio de corpos. Essa primeira parte é narrada em terceira pessoa.
Mas o que seria de Cristóvão, quantos mataria, como, por quê? A segunda parte, intimamente ligada ao segundo romance da “trilogia infernal” de Micheliny, o livro Aqui, no coração do inferno (Patuá, 2016) em que as personagens principais de cada romance se encontram, revela coisas sobre Cristóvão como sua prática de canibalismo, descrita naquele livro. Essa segunda parte de O peso do coração de um homem é praticamente uma continuação do livro anterior, com a mesma narração em primeira pessoa da personagem principal deste, dando à sua história um desfecho convincente e bem-acabado e concedendo a O peso o resultado da violência a que Cristóvão foi exposto na infância.
Como nos outros dois romances de Micheliny, a estrutura de conduzir o leitor a um falso ponto de fuga para depois lhe jogar em cheio o cerne da questão também se verifica. A autora é hábil nesse jogo, e ao leitor resta a sensação de que não leu o livro direito. A vontade é de começar de novo e, se o fizer, o leitor encontrará pistas que demonstram aonde a história quer chegar.
Trilogia infernal
Se em O peso do coração de um homem temos a vida de Cristóvão desde a sua infância, em Aqui, no coração do inferno temos uma adolescente, filha do delegado, que é a personagem-narradora em busca de afirmação, independência, ação. Ela se vê cara a cara com Cristóvão que, por correr o risco de ser linchado e por não haver uma cadeia para ele em Santana do Mato Verde, fica guardado na própria casa do delegado. Eles chegam a transar, na cozinha, mesmo com ele amarrado, por iniciativa da jovem. O canibalismo parece que a fascina, e isso retorna no finzinho de O peso do coração de um homem, quando se reencontram por acaso.
Embora Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida (Patuá, 2014; Prêmio São Paulo de Literatura 2015, na categoria autor estreante mais de 40 anos), o primeiro livro da “trilogia infernal”, tenha, na realidade, muito pouco a ver com os dois seguintes, há elementos de contato. No capítulo 5, eis que já desponta a vilã do último volume da trilogia:
De longe é uma pedra, um lagarto, uma ave. De longe, é um ponto, uma pedra, talvez uma árvore. De longe, pode ser tudo.
De perto, é uma mulher.
O lenço negro, a roupa negra, os cabelos denunciam, é uma velha. Não, não é.
Em seguida, o bando da Abutra: De perto, são cavaleiros, em tropel tão apressado que quase não há espaço para uma vênia.. Além disso, Luís, um personagem secundário em Nossa Teresa, ressurge como pessoa importante na vida da personagem-narradora nos dois livros seguintes.
Nessa trilogia, cumpre observar as esferas de ação. Em Nossa Teresa, a Igreja; no Coração do inferno, o Estado repressor; em O peso do coração de um homem, a esfera da família, apenas para sermos bem esquemáticos.
Mas o fato é que os três livros convergem para o problema histórico do regime militar. Já no primeiro, por pouco político que seja, há uma menção ao dia 1º de abril de 1964 logo no início. Nos outros romances, é o delegado, ou xerife; e sua filha, personagem-narradora do segundo livro e da segunda parte do terceiro, que se envolvem com a política. Ele, na condição de torturador; ela, de denunciante.
Em suma, a trilogia tem elementos diversos que enriquecem o seu conjunto, embora cada romance possa ser lido separadamente sem que a compreensão seja afetada. Com esses seus três primeiros romances, Micheliny acerta a mão e lança-se como uma grande ficcionista brasileira contemporânea.