4 de setembro de 2017

Dick Silva, no mundo intermediário

Mas e se você acordasse em um lugar que você desconhece, que se parece com uma delegacia e, agora, você vê tudo em preto e branco? Sim, em preto e branco! Bem, é mais ou menos assim, que Dick Silva, no mundo intermediário se inicia. O livro, para quem gosta de suspense pode ser lido em uma sentada, é o mais novo lançamento de Luís Dill, publicado pela Editora Pulo do Gato, com ilustrações de Márcio Koprowski. E como o subtítulo aponta, a história se passa em um mundo intermediário, num espaço chamado apenas de Cidade, ou Mortópolis, como ensina o tenente Herbert a Dick.

Dick não sabe o que aconteceu, de início, acorda na Sala de Interrogatórios do Departamento de Capturas do 10º Distrito, e o tenente Herbert O’Connor Duran y Toledo, que aparenta ser uma pessoa impaciente, não tem a mínima vontade de dizer onde ele está. Até que ficamos sabendo que Dick Silva morreu. Sim, a história é sobre mortos, ou quase isso, uma vez que eles ainda podem morrer novamente, ou ter uma nova “vida”.

O rapaz que acorda amedrontado e com uma dor de cabeça infernal, aos poucos, vai aprendendo a lidar com a nova vista, que visualiza tudo em preto e branco, e conhecendo um pouco mais da Cidade, onde a chuva tem hora marcada para cair.

No entanto, Dick não entende como pode ter morrido e estar em uma nova vida, e que esteja preso numa delegacia, já que ele não lembra de nada. O que é normal, uma vez que os ‘novatos’ na Cidade não lembram mesmo de quase nada. Alguns “acordam” enfurecidos e fazem loucuras, podendo ser mortos novamente e partindo para um outro local, outros, como Dick, acordam sonolentos e calmo, buscando entender o que se passa.

O suspense criado por Dill é muito bem composto. A ideia de alguém morto, à primeira vista, pode não chamar tanta atenção do leitor que é fã do gênero, mas com poucas linhas, vai-se percebendo que há algo na trama que envolve o tenente Herbert, Dick e moça de olhos azuis, chamada Bernardete, que faz o favor de nos deixar intrigado para o que virá, quem sabe, na construção da história e “nova vida” de Roneldick Samuel da Silva, deixando em aberto, como todo bom suspense, uma lenda a ser contada. Lenda essa que envolve alguém que chegaria à Cidade e poderia começar a ver cores (Dick consegue enxergar o azul nos olhos de Bernardete, mesmo que ela não acredite).

A Cidade, na qual se encontra Dick, em nada difere da nossa, exceto as cores que faltam nela, ou peculiaridade da chuva ter dois horários distintos para começar e terminar. Fora isso, todos podem ter uma vida normal, preenchendo-a com amores, intrigas, mortes e até mesmo com comida (por que não?).

Além disso, aparentemente, o vocabulário de todos ali presentes se parece com o que havia nas décadas de 40 ou 50. Os estilos de roupas, quando descritas, ou quando observamos as roupas que Herbert deixa para Dick vestir, remetem a essas décadas. O próprio Dick, depois de dormir pela primeira vez, e sair às ruas só, nota que, ao falar com uma senhora no meio da rua, se utiliza de palavras que nunca havia usado, ou pelo menos não lembrava ter utilizado.

Apesar de não ter conhecido antes a obra de Luís Dill, nunca havia lido nenhum livro seu, percebi que sua escrita é algo que flui, sem muita forçação. Talvez seja um reflexo da longa estrada que já criou em sua carreira ou porque não força ações ou cenas desnecessárias na história. Se você procura um livro para iniciar um pequeno leitor, talvez seja a hora de você conhecer um pouco mais de Mortópolis, talvez assim o jovem leitor possa começar a se preparar para a morte e quem sabe ver nela outras possibilidades, como viver, após à morte, em uma cidade preto e branco, com um certo ar noir, e ter as suas próprias aventuras. Afinal, é isso o que buscamos a vida inteira, por que não vive-las após a primeira morte?