13 de junho de 2017

A travessia

“Viver é muito perigoso... Porque aprender a viver é que é o viver mesmo... Travessia perigosa, mas é a da vida.”.

Guimarães Rosa

 

Não podia negar que o risco era iminente. O lugar, em si, era perfeito: escuro, quente, úmido, sujo e fétido. Embora os outros  parecessem satisfeitos ali, sabia que a morte os rondava a todo momento.  Esgueirou-se até a fresta mais próxima. Era dia claro e o sol brilhava alto. Definitivamente não era o melhor horário para sair. Olhou para a calçada na frente do bar. Três cadáveres jaziam esmagados no concreto duro.  Um, ainda muito jovem, se movia em desespero. Sentiu a presença de alguém ao seu lado.

- O que você olha?

- Três dos nossos morreram ontem. Um ainda agoniza.

O companheiro esticou os olhos por entre as frestas.

- Sabemos do risco. Sempre foi assim.

- Podemos buscar outro lugar, mais seguro.

- Aquieta teu desejo, companheiro. Aqui temos tudo o que nos basta. A escuridão que nos protege, a sujeira que nos alimenta, a umidade e a podridão que nos acolhe. O que mais precisamos?

- Liberdade, companheiro.

- Liberdade é um sonho impossível.

O companheiro afastou-se para um canto escuro, arrastando sua casca pesada e antiga.

Voltou para o ninho angustiado. Centenas de pequenos tinham nascido há poucos dias. Em breve se arriscariam naquele perigoso. Quantos seriam sacrificados indo em busca da própria sobrevivência? Não era possível viver assim.

Traçou uma meta. Reuniu os mais jovens. Esses sim erram arrojados, teriam coragem de ir em busca de uma vida mais tranquila, de um mundo melhor. Contaminou-os com seus sonhos. Sim, fugiriam dali. Planos esquematizados, corações ardentes e esperançosos, lançaram-se no mundo.  Protegidos pela escuridão da noite, partiram pelos subterrâneos. Enfrentaram a longa viagem alimentados pelo ideal. Assim que chegassem à nova terra enviaria uma mensagem aos outros. Todos seriam bem-vindos e viveriam em paz e livres para sempre.

Caminharam por dias buscando o lugar ideal. Alguns, impacientes, duvidavam que chegariam. Blasfemavam, cansados e desiludidos. Outros se desgarraram do grupo, num retorno perigoso e solitário ao antigo lar. Sentiu que era hora de pararem. Subiu à superfície para averiguar. Olhou os arredores. O lugar era perfeito. Moscas pairavam tranquilas sobre a imundície. Ratos e camundongos saboreavam restos de comida. Um buraco na parede frontal da casa abandonada parecia ser ideal para o novo ninho. Juntou alguns dos seus para verificar. Local perfeito. Quente e úmido, dava acesso à fartura do lixo a céu aberto, garantia a segurança e ainda permitia a entrada na casa, ideal para a diversão doa pequenos e para abrigo dos mais velhos.

Anunciou a chegada ao novo lar aos companheiros. Todos comemoraram felizes. Em êxtase exploraram o local, fartaram-se com os restos, divertiram-se pelas paredes. Contemplou o sonho realizado. Todo o esforço fora compensado: estavam felizes, livres e seguros. O medo é a pior prisão e ali nenhum temor havia.

Embora as manhãs fossem o período de repouso, despertaram todos assustados. Um barulho ensurdecedor vinha de fora. Os ratos guinchavam perdidos e apavorados. Espiou pela fresta. Um trator retirava todo o lixo que se acumulava no terreno. Alguns homens, munidos de foices, desbastavam o mato, outros pulverizavam inseticida pelos cantos e havia os que entraram na casa derrubando portas e paredes. Voltou-se para os seus:

- Precisamos fugir! Vão derrubar tudo!

Em desespero saíram do ninho. Desorientados pelos sons, pela luz e pelo medo, dispersaram-se. Pisoteados pelos homens, triturados pelo trator, asfixiados pelo veneno os poucos sobreviveram voltaram ao esgoto. Apavorados, caminharam em silêncio a longa estrada de volta ao antigo lar.  A velha casa parecia, agora, um lugar seguro. Olhou para os que ali estavam. Não havia nada a dizer. Arrastou a sua casca pesada e cansada para um canto escuro. Esticou os olhos para fora. Alguns cadáveres agonizavam. Engoliu sua tristeza e seu desejo. Viver é muito perigoso.