6 de fevereiro de 2017

O homem que corrompeu Hadleyburg, de Mark Twain

Hadleyburg pode ter sido a única cidade já existente que conseguiu a alcunha de incorruptível por várias décadas. Isso devido à maneira como seus cidadãos formavam sua própria sociedade, honesta e sempre devotada à sua cultura de não se corromper. É o que comenta o narrador da obra de Mark Twain, em O homem que corrompeu Hadleyburg:

Era tão orgulhosa e tão ansiosa em assegurar a perpetuação de sua honestidade, que começava a ensinar seus princípios a seus bebês já no berço, e fez dessas lições os pilares de sua educação, devotada a manter sua cultura. Além disso, as tentações eram mantidas distantes do caminho dos jovens em seus anos de formação, para que sua honestidade tivesse o máximo de possibilidades de cimentar-se e solidificar-se – até se tornar parte de seus próprios ossos.

Mas é possível aí também observar que os pecados eram mantidos longes, portanto dificilmente alguém cairia em tentação, não apenas nessa etapa da vida, em formação, mas durante todo o resto. Uma vez que eram afastados os pecados da juventude, provavelmente também não apareceriam no futuro, pois Hadleyburg era uma cidade quase que fechada em si mesma, causando invejas às demais cidades vizinhas.

É difícil imaginar como alguém pode se manter incorruptível durante toda uma vida. Difícil também de supor que uma sociedade investiria nesse tipo de educação, uma vez que o que vemos em nossas sociedades atuais nada mais é do que uma cultura em que a corrupção ganha espaço cada dia mais. Como seria ter, na vida real, uma sociedade em que a honestidade prevalecesse? Pode-se dizer que isso é algo comum e que várias pessoas realizam essa honestidade. Sim, concordo. Mas até que ponto? O que vemos nos noticiários ou sites jornalísticos, muitas vezes, são notícias de pessoas que foram honestas, como isso fosse uma exceção. Será mesmo? A honestidade parece estar ficando cada vez mais longe de nós ou é isso que os veículos de comunicação e os governos querem que acreditemos?

Voltando a Hadleyburg, a cidadezinha criada por Mark Twain parece querer ensinar ao leitor algo, certamente, que ninguém é incorruptível. Sempre dependerá do momento em que estamos vivendo, o que estamos passando e o que está a nossa frente como tentação.

 

 

Certa vez, um estrangeiro que passava pela cidade acabou sendo ofendido pela cidade e resolveu se vingar. Durante um ano inteiro, pensou em inúmeras maneiras até que chegou à conclusão de que o mais acertado era corromper toda a cidade, mostrando que o que eles mais tinham de ‘sagrado’ para eles cairia por terra.

O homem então tem a ideia de deixar uma bolsa, cheia de dinheiro, na casa de um caixa de banco. Sua mulher recebe o forasteiro receosa, mas acaba recebendo a bolsa que ele deixa e o bilhete que veio junto. Nele há toda uma história formulada pelo estrangeiro ofendido, em que diz que, em determinado momento da vida, fora salvo por um cidadão de Hadleyburg; quando estava na miséria, alguém deu-lhe uma nota de vinte dólares e disse-lhe uma frase que o teria ajudado a se recuperar e se reerguer, fazendo com que ele conseguisse trabalhar com afinco e ficar rico. E, agora, como teria muito dinheiro, gostaria de retribuir a esse cidadão, mas como fora ajudado durante a noite, não sabia nem o seu nome e nem sua identidade, e deixava a cargo da senhora Richards e de seu marido (o caixa do banco) a conseguirem achar essa pessoa e lhe restituírem todo o dinheiro como agradecimento.

Esse é o mote pelo qual passa a novela de Mark Twain. É a partir daí que irá se criar uma tentação para os adultos da cidade de Hadleyburg. O senhor Richards, ao chegar em casa toma conhecimento do que ocorrera e resolve mandar o bilhete para sair no jornal, para que toda a cidade possa ajudar a saber quem fora esse homem.

Mas depois disso o que se verá é que sentimentos ruins e maldosos começam a surgir, não apenas no casal Richards, entre os habitantes da cidade. Como a única pessoa que poderia ter realizado esse feito, de ter ajudado um mendigo à noite, dando-lhe dinheiro está morta, cada um dos habitantes começa a imaginar que poderia ter sido o responsável por tal ajuda. O senhor Richards passará noites tentando criar uma história em que aparente ser verídica, para, ao final, ganhar a bolsa valiosa. Mas percebe que todas as histórias que inventa acabam caindo por terra devido a pequenos detalhes, que também se ligam a Burguess, outro personagem que tem importância na história.

Assim, em uma noite, toda a cidade se reúne na prefeitura pra descobrir o responsável por tal feito e aclamar aquele que levará à glória a cidade por ter se mantido tão fiel e honesto durante todo esse tempo e que agora seria agraciado com uma bolsa recheada com milhares de dólares como forma de agradecimento por um estrangeiro.

Mas o que acontece, por desenvoltura do plano do estrangeiro, que acaba enviando inúmeros bilhetes falsos para diversos cidadãos ilustres da cidade, para que pensem terem sido eles os responsáveis por tal ventura, a de ajudar um desconhecido, fará com que na noite da reunião todos sejam vistos como falsários, homens desonestos e que, então, acabarão com a honra da cidade.

E assim acontece. A escrita de Twain vai, aos poucos, arquitetando, em pouco tempo, uma obra que precisa ser lida e tido como leitura fundamental para quem gosta de criar quebra-cabeças. Na novela, percebe-se os vários nichos criados pelo autor e que vão, aos poucos, se conectando, evidenciando os vários núcleos existentes dentro da cidade. Numa progressão de tempo, sem muitas regressões, conta uma história que, aparentemente, pode ser simples, pois o leitor poderá de antemão supor saber o final da história, até que Twain surpreende com uma certa reviravolta e nos faz gritar sozinhos com o livro em mãos.

Uma leitura rápida, mas densa, em que possibilita pensarmos os dias atuais como estão e como são. Que sociedade é essa que se forma em meio a tanta falsidade? A maneira como facilmente se engana a milhares, a possibilidade de mostrar que nem todos são o que dizem ser e mais, que até os honestos, na verdade, só precisam estar diante de seus medos ou de suas inseguranças para que isso caía por terra e mostre que somos todos iguais e que, portanto, não deveríamos querer ser mais uns dos que os outros.

É o tipo de leitura que facilmente poderia estar na escolas para poder ser possível dialogar com os nossos adolescentes e fazê-los ver e pensar sobre o que acontece entre nós. Questionar se o que acontece na cidade é algo que realmente a corrompe ou que a liberta. É possível, com as ações dos personagens, e o que acontece ao final do livro, parar para pensar se nossa sociedade é tão parecida com os homens e mulheres de Hadleyburg. Se a humanidade em si é honesta. Se fosse, estaríamos vivendo da maneira que estamos?

Um bom livro, como esse publicado pela Editora Grua, em sua coleção A Arte da Novela, é aquele que nos faz ter prazer, certamente, enquanto leitura, mas aquele que proporciona inúmeros questionamentos também. Trazer para a nossa realidade algo que achamos crer apenas como ficção é o que faz uma obra ter ares de grande. E o que ela traz, em suas dúvidas e seus questionamentos também.