19 de dezembro de 2016

“Dias de abandono” e a fragilidade do ego diante das perdas

Novamente abandonei a leitura que eu estava fazendo para dar prioridade a mais um livro de Elena Ferrante. Se, na outra ocasião, larguei tudo para me dedicar ao segundo volume da tetralogia napolitana, dessa vez, fui imediatamente capturado por Dias de abandono (Ed. Globo Livros – selo Biblioteca Azul). Em três dias de leitura, senti-me incrivelmente perturbado e envolvido pela loucura de Olga, a narradora e protagonista da obra. A escrita magnetizante e pungente de Ferrante é capaz de provocar um prazeroso mal-estar e um angustiante êxtase, que impactam e instigam surpreendentemente quem a lê. Ela não poupa o leitor e o expõe, sem reservas, às mais contundentes feridas psíquicas de um ser humano que tem que lidar com as nefastas consequências de um abandono. É praticamente impossível terminar a leitura sem que revivamos e reflitamos sobre os nossos próprios movimentos diante de inevitáveis perdas e abandonos que inexoravelmente sombreiam a vida.

Após quinze anos de casamento, Mario comunica que vai deixar Olga (e, consequentemente, os dois filhos – Gianni e Ilaria – e o cachorro de estimação Otto). Algo que intriga é que, aparentemente, o casamento não possuía pontos críticos que justificassem a separação. Contudo, no transcorrer do livro, vão sendo expostos diversos fatos que denunciavam a fragilidade daquele relacionamento e os siderantes traumas que Olga persistentemente se empenhava em superar. Entretanto, este súbito abandono a desestruturou de maneira devastadora. Noites de insônia, choro, arrependimentos, questionamentos e lamentações, em busca do porquê daquele inesperado ato cometido por Mario. Claro está que mais desolador que o abandono do marido foi – como a própria Olga assumiu – ela ter abandonado a si própria, entregando-se a um atordoante estado de insanidade. E é nesse tênue limiar entre a neurose e a psicose que podemos observar inquietantes elementos da psique da protagonista.

Olga cresceu cercada por um ambiente hostil, dentro de uma família ruidosa e que era dada a discursos e comportamentos estrondosos. Dessa forma, ela sempre se esforçava, ao máximo, para manter a serenidade e escolher criteriosamente as palavras e os gestos utilizados perante conflitos. O objetivo era se diferenciar daquele padrão familiar que a incomodava excessivamente. O casamento e as constantes mudanças de cidade (causadas por circunstâncias inerentes à profissão do marido engenheiro) lhe permitiam sufocar e disciplinar qualquer emoção mais exasperada. Tal contexto lhe garantia uma via possível de organização psíquica, que lhe concedeu, inclusive, o poder de contornar duas crises matrimoniais. Nessas ocasiões, Mario alegou sofrer de um “vazio de sentido”, que o impulsionava a deixar a esposa. Porém, logo se arrependia e restabelecia a relação. Isso não se repetiu após o abandono que marca o início do livro. Dessa vez, não havia mais perspectiva de que Mario voltaria e, então, Olga desmoronou. Sigmund Freud, em sua obra Luto e Melancolia (1917), tenta distinguir essas duas condições citadas no título, que são muitas vezes decorrentes da perda de um ser amado. O luto seria uma reação a essa perda, comportando um doloroso abatimento, com cessação de interesse pelo mundo externo, incapacidade de eleger um novo amor, afastamento de toda atividade que não se ligue à memória da pessoa perdida, de tal forma que nada mais resta para outros intuitos e interesses. Já na melancolia, haveria um trabalho mais árduo para retirar o afeto investido naquele indivíduo tomado como objeto de amor, uma vez que essa energia psíquica não estava investida precisamente naquela pessoa, mas em algo do próprio sujeito que estava identificado nela. O que maltratava Olga não era exatamente o marido que ela perdeu, mas sim o que havia dela em Mario. Quando Carrano, o vizinho, disse para ela: “Você não é diferente do seu marido; afinal, também ficaram tanto tempo juntos”, ele denunciou algo que ocorre muito frequentemente com pessoas que convivem juntas por um longo tempo – um adquire características e maneiras de ser do outro, inconscientemente. Quando há uma separação, é difícil abrir mão daquela pessoa com quem houve uma identificação, pois a sensação é que está sendo perdida uma parte de si mesmo. Essa declaração de Carrano causou em Olga várias reflexões incômodas, em que ela tentava responder perguntas como as seguintes:

 

“Eu era como o Mario? Mas o que significa isso? (...) Agora que Mario me deixou, se não me amava mais, se eu mesma já não o amava mais, por que seguia carregando na carne tantas coisas suas? (...) Mas eu, se me pareciam amáveis todos os sinais do passado que assimilei dele, agora que já não me pareciam amáveis, como poderia realmente arrancá-los de mim? Como poderia raspá-los do corpo, da mente, sem ter que descobrir que assim fazendo também arrancava fora a mim mesma?”

 

Freud nos diz ainda que a mesma pessoa que é amada pode ser igual e simultaneamente odiada. Tal ambivalência afetiva fica comumente evidente em experiências de perda. A demonstração de ódio pelo marido fica explícita quando Olga encontra Mario na rua, acompanhado de Carla (a nova parceira) e o ataca com extrema violência. Todavia, essa agressividade investida contra Mario também se dirige à representação interna do marido que Olga carrega em si, o que causa terríveis danos a ela própria (exemplificada nas situações em que Olga agride o próprio rosto até sangrar, em que ela prende uma pinça em seu braço e quando solicita que a filha lhe espete intermitentemente com um abridor de cartas). Há um momento em que Olga se insinua para Carrano e, muito provavelmente, essa escolha se dá porque ele era um desafeto de Mario. Nesse caso, é possível apontar que também há uma demonstração de ataque e agressividade contra o marido, uma vez que ela procura justamente alguém que é detestado por ele. Para Olga, é tão difícil livrar-se de Mario que até um possível substituto tem vinculação com o marido perdido. Enquanto Olga tenta seduzir Carrano, constantemente ela fantasia como deve ser o sexo entre Mario e sua amante. Num instante em que ela poderia desfrutar de prazer, ela insiste em evocar uma fantasia que lhe traz sofrimento. Olga busca em Carrano o olhar de desejo de um homem, mas se depara com a dificuldade dele em se excitar fisicamente. Quando ela, enfim, provoca nele uma ereção, ele ejacula mesmo antes de penetrá-la. Essa tentativa desastrada arrasa ainda mais a débil autoestima de Olga.

Algo que fica bem perceptível é o quanto Olga se identifica com uma figura de sua infância – a “pobre coitada”. Esta era uma vizinha que atraía a atenção de Olga e que, após ser deixada pelo marido, ficou completamente perturbada, chegando ao ponto crítico de se afogar num rio. Olga relembra um episódio da infância em que escutou a mãe falando que aquele era o fim de uma mulher que não conseguia segurar o marido. Olga toma essa determinação para si; cola-se a essa fantasia de que o destino de quem é abandonada é a miséria, a morte. Depois do abandono, Olga passa a não cuidar mais dos filhos e, assim, ela se vê tendo que lidar com a sua grande problemática com a maternidade, até então velada pela presença do marido. Isso tem associação tanto com a negligência afetiva que sofreu por parte de sua mãe quanto pelo fato de que a “pobre coitada” descontava a raiva do abandono nos filhos, porque eles deixaram nela o “cheiro de mãe”; eles eram os verdadeiros culpados pelo marido tê-la abandonado. Em certa situação, ao limpar o vômito do filho, Olga lembra a época das mamadas e das papinhas, em que ela também se sentia impregnada pelo “cheiro de mãe”. Esse cheiro implicava em um apagamento da imagem de mulher e de amante, sobressaindo a figura da mãe –  uma mãe a ser violada, o “corpo de um incesto”, como ela mesma define. Referia-se à prole como “filhos de Mario” e aguardava a oportunidade em que voltaria a ser como era antes deles terem vindo ao mundo. Estar diante dos filhos era sentir-se mal por, ao amá-los, estar amando indiretamente o marido, uma vez que eles portavam características do pai.

Mario não estava representado apenas nos filhos, mas também em um personagem bastante interessante – o cão Otto. Em muitos momentos, ele parece exercer para Olga a função simbólica de substituto do marido. Houve até mesmo situações em que ela se dedicava mais aos cuidados do animal que aos filhos. Sofria intensamente com a dúvida sobre sua responsabilidade no adoecimento e na morte de Otto (possivelmente ocasionados por envenenamento). Da mesma forma como ela esqueceu um caco de vidro na comida de Mario, ela também largou pela casa um tubo de inseticida, ficando facilmente ao alcance do cachorro. Somente após o falecimento de Otto, Olga consegue se desvencilhar mais facilmente do apego doentio ao esposo. Talvez para não chegar ao extremo de matar concretamente a Mario nem a si mesma, o cachorro serviu como “bode expiatório”. Assim, ela pôde simbolicamente matar o marido. A culpa da morte do cachorro, que tanto a perturbou, é finalmente projetada em Mario, pois ela alega que Otto foi envenenado por alguém que queria se vingar do ex-companheiro.

Lentamente, Olga vai ressignificado as faltas, reconstruindo os laços, investindo energia e afeto em novas possibilidades. Após tanto aturdimento e obscuridade, instala-se uma atmosfera de esperança, apesar das ruínas que irremediavelmente remanesceram. Dias de abandono traz inúmeros aspectos psíquicos que podem ser densamente analisados e discutidos. É uma leitura que, indubitavelmente, vale muito a pena e que eu recomendo com enfático vigor.

 

Henrique Luz, psiquiatra e psicanalista