7 de novembro de 2016

A harmonia inconsciente do caos no novo Salman Rushdie

Bons autores de realismo mágico ensinam que a sutileza ao empregar efeitos fantásticos como parte do cotidiano de seus personagens são a base do gênero. Seja em cidades imaginárias, como a inesquecível Macondo, ou reais, elementos mágicos utilizados com parcimônia intensificam a experiência de vida presente na obra lida. Contudo, quando tais efeitos são empregados em excesso, a expectativa constante por cenas bombásticas por vezes cansa o leitor (como analogia, pense em um filme com explosões constantes). É natural, portanto, que alguns escritores exagerem na narrativa, e mesmo Salman Rushdie, um expoente do gênero, comete excessos.

“Dois anos, oito meses e vinte e oito noites” (Companhia das Letras, 2016), o novo livro do autor indo-britânico, é o mais incoerente de sua obra. O primeiro motivo está na confusão de gênero empregada. Em essência é uma obra de realismo mágico ambientada no início do século XXI. Contudo, logo somos informados que o narrador-observador é do terceiro milênio e que, naquela linha temporal, houve uma grande guerra entre djins bons e maus e, portanto, o que estamos lendo são os fragmentos históricos daquele confronto. Ou seja, trata-se também de uma história de Ficção Científica.

É tão confusa essa informação que o próprio autor não desenvolve nenhuma outra característica sobre aquele terceiro milênio. Ficamos sem saber, por exemplo, se o narrador é um humano ou talvez uma máquina rodando um programa histórico ininterruptadamente (verossímil do ponto de vista da Ficção Científica).

Mas o principal motivo da incoerência é o desenvolvimento da história. Esqueça o Salman Rushdie que emprega a técnica do realismo mágico com a sutileza e efetividade que o tornam constantemente uma figura cotada para o Nobel. “Dois anos, oito meses e vinte e oito noites” conta com cenas mágicas grandiosas demais até para Hollywood: djins variados, seres místicos, deuses da carnificina, matanças, humanos com poderes diversos, são alguns exemplos do que Salman funde, com agressividade, nas páginas.

A superexposição da violência no confronto é atenuada apenas por conta da escrita harmônica do autor, que busca "fazer esquecer" a intensidade de algumas cenas com análises filosóficas sobre Deus, o pecado, a predisposição humana para o bem ou para o mal e assuntos semelhantes – temas recorrentes na obra do autor.

E quanto à história?, o leitor perguntará. “Dois anos, oito meses e vinte e oito noites” começa ensinando que existem djins masculinos e os femininos, chamadas djínias, e, enquanto os masculinos são formados de fogo sem fumaça, os femininos têm formas feitas de fumaça sem fogo. Em seguida lemos sobre djins bondosos e malignos e como eles vivem em sua terra mística. Passado o Discovery Channel dos djins, somos apresentados ao casal Ibn Rushd (ou Averróis, como é conhecido no Ocidente) e Dunia, ele um filósofo do século XII, ela a princesa dos djins. Em resumo, ela era apaixonada por ele e dedicou um pouco de sua eternidade para gerar muitos filhos.

A prole expandiu-se pelo mundo através dos séculos até chegar ao personagem principal da história, um dos filhos de Dunia, Raphael Hieronymus Manezes, nascido em Bombaim, mas que mudou-se para os EUA e passou a dirigir um negócio de paisagismo com o nome de Mr. Gerominho. Após uma tempestade incomum, Gerominho começa a levitar pouco acima do solo. Logo outras pessoas (também filhos de Dunia) começam a apresentar poderes inexplicáveis. A surpresa dá lugar ao medo: um djin maligno surge com um exército para travar uma guerra definitiva contra a humanidade. Em oposição, Dunia aparece no mundo humano reunindo sua prole para tentar salvar o mundo.

O enredo rocambolesco visa reverenciar e referenciar a viga mestra de “As mil e umas noites”. Por isso mesmo, aos apreciadores, o livro de Rushdie é agressivo, cáustico, sustentado pela exposição da violência em paralelo com a constatação da fragilidade humana. Nem “Fúria”, livro do autor que utiliza a raiva dominante no homem como catalisador da trama de decadência, é tão violento quanto “Dois anos, oito meses e vinte e oito noites”. Contudo, também notamos que a história é conduzida com a harmonia inconsciente do caos.

Dito isso, se deseja iniciar a leitura de Salman Rushdie, procure outro livro. Leia “Shalimar, o equilibrista”, “Fúria”, “O chão que ela pisa” ou a “Feiticeira de Florença” (livros mais palatáveis que os clássicos “Versos Satânicos” ou “Os filhos da meia-noite”). “Dois anos, oito meses e vinte e oito noites” é um ponto fora da curva e somente as próximas obras do autor dirão se ele resolve mudar seu trajeto de escritor ou retornar ao estilo que o consagra.