4 de outubro de 2016

O caso Meursault, de Kamel Daoud

A história que é narrada no romance de Kamel Daoud, O caso Meursault, não é algo que você terá conhecido em outro lugar. Até este momento, o que sabíamos é que Meursault era um personagem de um livro, escrito por Camus. Mas estávamos errados. Ele conseguiu fazer com que Haroun e sua mãe sofressem durante anos. A culpa? Não apenas sua, mas daquele também que “sabia contar histórias, a tal ponto que conseguiu fazer com que o seu crime fosse esquecido”, ou seja, daquele que contou a história de Meursault, que a ‘inventou’.

O livro do escritor argelino gira em torno da história que Haroun conta em um bar, na cidade de Orã, para um estudante universitário. Este quer ouvir o outro lado da história, quer saber mais sobre o corpo que fora encontrado e abandonado ao anonimato quando morto em uma praia semideserta, no ano de 1942, às duas horas da tarde, na França.

Assim, depois de termos ouvido a história contada por Camus, agora é hora de ouvir o que tem a dizer o narrador da história de Daoud. É importante não buscar delimitar o que é literatura ou vida real aqui, ambas são um só, o que importa é Haroun e sua angústia solitária.

Como foi que o meu irmão foi parar naquela praia?

Essa é uma das várias perguntas que Haroun se fará enquanto conta sua história. Uma história que, de acordo com ele, não é comum, pois ela parte de uma outra narrativa – contada por Albert Camus, em seu livro O estrangeiro.  Meursault, que pensávamos ser apenas um personagem, mata um árabe. O assassinado, que jaz estendido sobre a areia branca, é Moussa, irmão mais velho de Haroun.

Não é uma história comum. É uma história que começa pelo fim e volta ao início. Sim, como o desenho a lápis de um cardume de salmões. Como todos os demais, você deve ter lido essa história tal como a contou o homem que a escreveu.

Desde o início da narrativa de Daoud, é possível perceber que Haroun ironiza, quando possível, a situação em que se encontrou durante a vida ao lado de sua mãe. Demonstra, ainda, a sua raiva pela morte do seu irmão ter ficado no anonimato, quase como um indigente, como se Moussa tivesse nascido apenas para ter caminhado em direção a uma bala.

A primeira parte da narrativa de Haroun é sobre como Moussa fora morto e como isso não era algo importante, exceto para ele e para sua mãe. Para ele, a história do crime, antes narrado por Camus, não começa com a frase “Hoje, mamãe morreu”, de Meursault, mas quando Moussa, antes de sair de casa, se despedira de sua mãe, dizendo que voltaria mais cedo que o normal. Mas Moussa partiria para nunca mais voltar.

A partir daí, o que se lê é como Haroun passou os anos de sua vida, praticamente encarcerado em casa e em sua mente, com sua mãe, à procura de dar um significado à morte de seu irmão. Sua mãe, querendo ver nele a imagem do irmão mais velho, o fez sofrer, fisicamente e mentalmente. Haroun não socializava, evitava as saunas, os jogos, e, no inverno, usava uma túnica, como se andasse a se proteger do olhar dos outros. Ele, em certo ponto da narrativa, se questiona: “O que você queria que um adolescente encurralado entre a mãe e a morte fizesse?”.

E é justamente sobre isso que, a meu ver, trata o livro. A história de Moussa, que está diretamente relacionada à de Meursault, apesar de parecer ser o ponto forte do livro, não é o principal aqui. Não para mim enquanto leitor. Daoud, é verdade, conseguiu com maestria realizar uma obra importante, em que a partir de um ponto crucial de um outro romance cria uma nova história. É como se tivesse criado a resposta para àquela pergunta que por vezes fazemos quando um personagem que gostamos deixa de existir em determinada história: O que terá acontecido com ele?

Assim, a história que é narrada em um bar, em Orã, não fala apenas de Mouusa, fala de Haroun, em como esse homem solitário, praticamente abandonado a si próprio, sem amigos, sem laços familiares, manteve-se “firme” junto à mãe, que talvez tenha sido um dos elementos que o mais fez sofrer.

Ao mesmo tempo que há essa busca de Haroun para entender o que ocorrera e o que justificaria a morte do irmão, parece que há também uma busca para se encontrar, uma busca inalcançável que ele próprio alimenta, e que o faz passar por décadas de sofrimento e de angústia.

O único momento em que pode se sentir vivo foi quando realizara o mesmo ato de Meursault. Haroun, em uma madrugada, enquanto revoltas pela independência na Argélia ocorriam, em seu quintal, mata um francês.

Sim, o crime inverte-se.

Agora, Haroun também busca compreender, em meio à prisão, porque matara aquele francês e o enterrara em seu quintal com sua mãe. Para se libertar? Para libertar a mãe de um sofrimento que não conseguia dar cabo?

O leitor é quem decidirá, assim como o universitário que Haroun em um bar. Como ele mesmo diz, esse é o outro lado da história, não cabe a ele dizer qual a verdadeira história. Quanto a isso, é “uma questão de foro íntimo”.

O último dia da vida de um homem não existe. Fora dos livros que contam coisas, nenhuma salvação, apenas bolhas de sabão a explodir. Eis o que comprova melhor do que qualquer coisa a nossa condição absurda, caro amigo: ninguém tem direito a um último dia, mas apenas a uma interrupção acidental da vida.