9 de setembro de 2016

Âncora

“Fique atenta aos portos, menina, o mar é imenso, sabia? Você tem que saber onde ficam os portos seguros pra quando for preciso ancorar sua embarcação. Fique sempre atenta, tem que saber guiar o teu barco até o porto mais próximo.”

Desde sempre tentaram me convencer. Ser esperta, jogar a âncora e esquecer o oceano. E se sair, se precisar sair (porque, né, os barcos foram feitos pra isso), se for pra longe do continente, eu deveria ser prevenida. Conhecer a arte dos marinheiros e a engenharia dos capitães. Se guiar na lei da rosa-dos-ventos pontiaguda e no Atlas de infinitas coordenadas de outros viajantes. E estar de prontidão pra voltar quando a primeira tempestade se revelasse no meu radar.

Quase me convenci, mas não, não sou de acreditar. Não sabem de nada. Diferente da geografia dos livros de geografia, esses portos não estão cravados no mesmo lugar. Não têm coordenadas fixas no GPS.  Estão à deriva assim como eu. Se espalharam na expansão natural dos dias. Saíram de vista, se foram. Não vejo eles faz tempo, fugiram na linha do horizonte pra nunca mais se ver.

São imprestáveis a rosa-dos-ventos e o mapa, o que reina sobre minha cabeça é esse caos fractal da abóboda celeste volátil. Toda essa ciência náutica é imprestável nessa paisagem imprecisa. Milhas náuticas, milímetros, anos-luz. Tudo farinha do mesmo saco. Meus mapas náuticos são novelos que não cabem nesses planos tridimensionais. Rasguei o Atlas inteiro e brinquei de jogar bolinhas de papel no lixeiro. “Siga Plutão em Libra, quadrando Urano-Netuno num aspecto separativo em relação a Mercúrio”, também nunca soube ler os mapas astrais. Como eu saberia se no meu céu as únicas estrelas que brilham são estrelas cadentes.

Quantos portos deixei passar? Quantas vezes fui no canto da sereia? Agora vago nessa miopia da linha do horizonte, longe da marinha e dos pescadores.  Sem porto por perto. Transformei o meu barco em um bote errante na correnteza, nesse mar sem estrada não decido nada, só sou soprada. Soprada feito o fogo alaranjado ateado por boias-frias nas noites agrestes dos canaviais. Soprada feito uma foliã embriagada errante de boca em boca entre os abadás nas ladeiras dos carnavais. Vapor barato. Sem estrada. Sem precisar decidir pra lado bifurcar. Esquerda ou direita. Cima ou baixo. Certo ou errado. Minhas decisões são decisões tolas. Casamento ou bicicleta. Peito ou coxa. Japonês, china ou a salada de vinte conto do Empório.

E sabe o que é pior. Se eu pudesse voltar atrás, eu não mudaria. Não me acostumaria viver ancorada. Sombra e água potável, enjoa. Não me sinto coitada. Apesar de perdida, não me sinto náufraga. Naufrago é aquele que deseja ser resgatado.  Sou um bote tolo levando um âncora pesada. O que menos preciso agora é de uma âncora. Então por que diabos ainda levo ela comigo esse peso desnecessário, já que só ela é carga? Não sei, talvez se eu tivesse dado ouvido e tivesse lido os avisos aos navegantes.