14 de julho de 2016

Com as outras vai Maria

Sou dada a acordar com galos, feirantes e párocos; gritar aos sonâmbulos confusos o quanto estou feliz em estar viva. Quase como um mantra diário, sou dada a gritar ao sol, astro-rei, por favor, venha iluminar meu recomeço diário. De longe, madrugadores assim como eu indagarão, quem é essa moça que, de peito aberto, não tem medo de afrontar o levantar desta bola de fogo que não para por nada. Porém, disso não sabem eles, com a mesma intensidade que eu brado, eu me traio; na verdade, meu apelo é ironia das piores; meu grito é mera queixa.

Quero que o sol de luzes pontiagudas vá às favas; não me venha brechar enquanto estou a me maquiar toda nos sonhos: momento em que arranco e sepulto imperfeição por imperfeição da minha face; em que mergulho no borrão embranquecido, ali esqueço das linhas que fazem o meu desenho; sou feita de dor e linhas, e isso não me importa enquanto sonho.

Quando a inflexão do corre-corre me obriga a não pensar e sair de casa, desisto de gritar ao sol. Saio por entre as ruas, vendendo, comprando, pedindo, ganhando o meu pão de cada dia, na contradança do que realmente quero. Não me olho, nesse ínterim, não sei o motivo certo disso. Evito me deparar frente a frente com o vidro do ônibus, com o retrovisor, com monitores apagados; prefiro o acalento das letras das telas acesas, das letras mortas do livro de papel pólen.

Eu deveria procurar o espelho, logo quando me levantasse, de manhã bem cedo, após meter a água no rosto e a pasta nos dentes. Mas não, sou inimiga, repito, sou inimiga desse mal que assombra meu espelho e meu vestido, que dá cores de flor morta ao meu vestido. Por que não fazer isso antes de dormir, ao chegar de um dia puxado no trabalho? Ou com a lata cheia de cachaça? Eu sei, vejo sempre por aí, sou igual a todas as outras pessoas, abro a geladeira, deixo sentir o movimento do gás percorrendo as entranhas metálicas. Me encho de creme, enfio duas rodelas de pepino sobre os olhos ou olho pra uma parede em branco — é grandiosa a leveza de uma parede em branco. Vez ou outra me desligo diante à tevê; quando não, meto dois comprimidos goela abaixo, jogo-me entre lençóis brancos e sinto as luzes impiedosas apagarem. No escuro, no breu total, não há imagem, não há onde focar; talvez só a bruma branca dos sonhos.

Se eu fujo da luz, é porque ela tem o mau hábito de me rodear. Por isso fujo de tudo que possa me refletir, que faça alusão a mim mesma. Diante do espelho não adianta nada se faço caras e bocas pra disfarçar: como uma miserável raquete, ele rebate a minha imagem contra mim, só pra ver como reajo. Faz isso e fica rindo nas alcovas, espera que eu perca a linha, e eu, óbvia-maria, perco. Não sou capaz de olhar pro meu próprio rosto e sorrir. Sorrirei de quem? Do quê? Sou um retrato desbotado do que esperei algum dia atrás ser. Sou uma boneca de massa de modelar sem simetria, feita de uma massa que se desmancha ano a ano. Sou o que nunca quis ser e guardei sob a pele coisas que me tornaram assim, um ser irreconhecível pra mim mesma. O espelho, tenho raiva dele e de sua persuasão. Mesmo sabendo que ele, apesar de ser um filha da puta, não torce nem distorce, não aumenta nem diminui, ele somente me mostra como sou. Mesmo sabendo que o espelho é um maria-vai-com-as-outras, tenho raiva dele ser assim: dizer na cara as coisas que ninguém diz.