5 de julho de 2016

O pior dia de todos

Os últimos detalhes eram revisados diariamente. O quarto rosa, a malinha da maternidade, as recomendações médicas para a internação e a cesárea agendada. Alice. O enfeite na porta do quarto anunciava o nome da princesa que ali habitaria em alguns dias. Apenas três dias separavam aquela criaturinha tão desejada pelos pais amantíssimos. A casa pronta, o pai acompanhando tudo de perto. O mais renomado médico, o hospital de referência, tudo de bom e do melhor aguardava a pequena Alice.

Logo cedo a conferência das roupinhas e a malinha era feita. O marido acompanhava orgulhoso e ansioso. Não há nada melhor do que planos que dão certo.  O tempo certo pra casar, pra comprar uma casa boa, grande, com jardim e quintal, em um condomínio seguro e afastado para garantir a segurança deles e da pequena Alice. Agora, com a chegada da princesinha esperada, seriam uma família ainda mais feliz.

Roupinha da saída da maternidade combinando com a da mamãe, mantinha, gorrinho e, de repente, uma sensação esquisita. Pernas e chão molhados.

- Vida! Acho que a bolsa estourou!

As crianças começam aprontando desde cedo, brincou o marido, tentando se manter calmo. Eventualidades haviam sido planejadas. Em caso de emergência era só ligar para o consultório do médico que logo ele e a equipe estariam no hospital. Enquanto ajudava a esposa a se trocar, ligou pra pedir as orientações. Explicações iniciais e o espanto em sequência.

- Como assim ele retorna em dois dias?! Minha filha vai nascer agora! Eu tô calmo! Não quero a equipe dele, quero ele! Como?! As equipes estão de emergência?

A esposa olhou pro marido lívida. O marido bateu o telefone. Não podia deixá-la nervosa naquele momento.

- A gente vai pro hospital. O doutor teve um problema, parece que foi um falecimento na família. Lá no hospital eles vão orientar a gente melhor. Você tá bem?

A esposa assentiu com a cabeça. Vamos logo, completou angustiada, já sentindo as primeiras contrações chegarem. Era melhor irem rápido. Não suportaria sentir dor.

Carro ligado, esposa acomodada, GPS preparado. Avaliou e escolheu o caminho mais curto e partiram. Morar afastado tinha lá suas vantagens, mas sempre demandava um tempo maior de percurso. Teriam que ser ágeis.

O silêncio da ansiedade era quebrado pela voz monótona da mulher do GPS indicando o caminho: vire à direita em 300 metros, siga 4 quilômetros, vire à esquerda em 500 metros. O trânsito, que fluía bem até aquele momento, foi ficando lento, até parar. Alguma bobagem, vão liberar logo. Cinco, dez, quinze minutos estáticos. A esposa respirava cachorrinho como haviam ensinado no curso de gestantes. E o trânsito permanecia parado. Alguns ambulantes começaram a vender água e biscoitos. Era um sinal que as coisas não iam bem. Um péssimo sinal. O marido arriscou perguntar para um ambulante o que acontecera. Um acidente feio, doutor. Um monte de carro engavetado, gente morta. A esposa começou a chorar. O ambulante se compadeceu do desespero deles, olhando enternecido para o ventre que se contraía. Passa por cima do canteiro, doutor e corta por aquele caminho. O homem apontava o morro apinhado de casas. O marido olhou para a esposa se contorcendo de dor e para o morro. Não tinham alternativa. Era esse caminho ou Alice nasceria ali, no meio do congestionamento. Sua filha não fora feita para nascer como filho de pobre, que nasce no meio do trânsito, dentro de carro de policial ou bombeiro. Alice não. Era sua princesa. Faria tudo para dar a sua pequena um nascimento digno. Decisão de segundos, cortou o canteiro centrar e seguiu na direção indicada.

Finalmente trânsito livre, respirou aliviado o marido. E a mulher, no torpor da dor, não pensava em nada, só vislumbrava o hospital e a analgesia. Subiram a primeira ladeira estreita. Olhos desconfiados os observavam. Carro de rico no alto do morro, não combina não. No máximo chegam ao pé do morro pra negociarem bagulhos alucinógenos e outras coisinhas mais, que unem pobres e ricos. O marido, a mulher e os gemidos intercalados. Era só o que havia no carro. Até o GPS se calara diante do mundo estranho que estavam.

Pela indicação do gentil homem da água, mais duas ladeiras acima e encontrariam a fatídica descida que os levaria para a segurança do asfalto. Um tranco e um barulho. A direção puxou para um lado. Pneu furado. Calma, amor, fica no carro que é rapidinho. Abriu o porta-malas e começou a troca, sob o olhar curioso de alguns moleques que empinavam pipa numa laje próxima. Um deles ofereceu ajuda. O marido recusou. Nunca se sabe o que essa gente quer. O maldito pneu foi trocado rapidamente. O marido entrou o carro vitorioso. No máximo, em 20 minutos, estariam na maternidade.

- Moço!

O que aquele moleque, grudado na janela do carro queria? Um trocado talvez.

- Não tenho trocado agora, garoto – enfiou a mão no bolso e encontrou apenas alguma moedas para salvá-lo daquela presença incômoda – Toma isso pra comprar um doce.

O menino recusou.

- Não é isso, tio. O pneu da frente tá furado também.

Suado e ofegante o homem pulou do carro. Pneu no chão. Teve vontade de chorar, mas tinha que se manter calmo. Borracharia? Só lá embaixo. E a mulher chorava de dor. O homem levou as mãos à cabeça.

- Tio, leva a moça lá pra casa. De lá a gente chama o SAMU. Só que demora. Poderia ser uma solução paliativa até ver se conseguia uma ambulância do hospital planejado.

- Leva a gente lá, garoto.

O marido apoiou a esposa nos braços e subiram as escadarias que levavam a um beco, depois outro e finalmente à casa escura e úmida do garoto.

- Mãe!

Uma mulher saiu de um outro cômodo minúsculo da casa resmungando, desgrenhada, com cara de sono. Acedeu um cigarro que bailava amarfanhado no canto da boca.

- Que gritaria, Jobson!

- Mãe!

O menino apontou para o casal que esperava na porta de casa.

- Ela tá tendo bebê! – o menino Jobson adiantou.

- Eita, porra! E veio parir aqui em casa?!

- O pneu do carro furou... - explicou o garoto.

A mulher olhou os dois de cabo a rabo.

- Vocês têm cara de quem tem grana. Como vieram parar na favela?

- É uma história longa, minha senhora...

A mulher gritou. A barriga endureceu.

- Jobson! Leva ela pro quarto que a criança tá nascendo. E chama a dona Odete que já foi parteira lá no Norte. Ah, e chama a Val pra ajudar.

O homem tirou o celular do bolso. Precisava contatar o hospital e buscar auxílio. Quem sabe um helicóptero ou algum meio de uma equipe de emergência de confiança chegar e evitar que a pequena Alice chegasse ao mundo no meio da favela. Celular sem sinal.

- Sobe na laje, tio. Lá de vez em quando pega. – completou Jobson solícito apontando para uma escada mal construída que levava para a laje e já saindo atrás da parteira.

O marido foi até o quarto minúsculo escuro e úmido. A esposa já estava lá deitada, sem calças, pernas flexionadas e abertas. Chegou a ter um pouco de nojo. Não era assim que tinha planejado. Aproximou-se da esposa para tranquilizá-la:

- Vou chamar ajuda.

Ela já nem ouvia. Entre um grito e outro, suada, fazia força para expelir Alice.

- Já chamei o SAMU, moço. Mas vai demorar pra chegar, porque a ambulância tá em serviço.

- Obrigado, senhora, mas vou ver se consigo falar com o hospital que ela vai ter o bebê. Lá eles têm...

A mulher interrompeu rindo.

- Hospital de rico subindo a favela?!  Nem eles qué, nem os patrão deixa, moço. Se o SAMU não chegar, nasce aqui.

Mais um grito forte da esposa e Alice já coroava entre as pernas da mãe. As duas mulheres chamadas chegaram, solícitas e aflitas. Junto com elas um batalhão de crianças remelentas e mulheres desocupadas, que preencheram a sala, o quarto e disputavam lugar na janela. Não, definitivamente, não era assim que tinham planejado durante anos a chegada da pequena Alice. A mulherada falante, recordava os próprios partos com riquezas de detalhes desnecessários. Chegaram toalhas, lençóis, uma fervia a água, outra esterilizava a tesoura que cortaria o cordão. A esposa suada e entorpecida gritava de mãos dadas com uma das mulheres que ali estava. O homem assistia a tudo atônito. E tudo foi muito rápido. Faz força, moça, incentivava a parteira experiente. A mulher gritou mais forte. As pernas se abriram ainda mais e o corpo se expandiu num esforço imenso. A pequena Alice escorregou pela vagina da mãe, recebendo a luz pálida e os olhares festivos das mulheres do lugar, berrando a plenos pulmões e enchendo o ambiente com o choro da vida. A mulher sorriu aliviada. O homem, petrificado, esboçava um sorriso também. Passaram a tesoura para a mão dele. Corta o cordão da tua filha, moço, alguém falou. Inseguro, realizou a tarefa. A menina foi entregue em seus braços de olhos abertos e espertos. Pai e filha se olharam no meio do caos. O pior dia de todos tinha sido o melhor.