18 de junho de 2016

A camisa

 

leonardo já estava pronto. dentes escovados, cabelo impecável, unhas lixadas, nenhuma marca de uma noite de sono ruim. ele sempre dormia bem, comia com apetite, mas com moderação. aliás, era moderado em tudo. os clientes do banco o adoravam, gostavam do seu tom contido de voz e de seu sorriso não muito arreganhado, sabe, aquele sorriso simples. leonardo tinha uma carreira promissora.

naturalmente, ele tinha seus defeitos. ele deplorava os colegas que iam trabalhar de camiseta ou tênis, ainda que caros. acreditava que para transmitir uma imagem de correção e seriedade era necessário vestir-se de maneira formal e discreta. havia no banco até um rapaz que usava alargadores nas orelhas! um horror absoluto! fosse ele o gerente, jamais o contrataria.

faltava apenas a gravata. sim, leonardo fazia questão da gravata, tinha muitas, e extremo bom gosto em suas escolhas. naquela manhã, decidira vestir uma camisa cinza, e optou por uma gravata azul celeste com listas muito finas. a calça era azul marinho e o cinto e o sapato reluzente, marrom. leonardo, além de tudo, era bonito. vestia bem aquelas roupas sociais. tomou sua pasta e saiu para o trabalho, chegando, antes, novamente, no espelho de corpo inteiro, se estava tudo de acordo.

leonardo ia para o banco de metrô, depois fazia um curto percurso a pé. no vagão, os que estavam sentados tinham os olhos fechados e as cabeças pendentes. quem estava em pé normalmente expunha olheiras. aquela massa de relaxados irritava leonardo, que gostava de ordem e firmeza.

descendo do metrô, como de costume, parou um instante na vitrine de uma loja de artigos masculinos. para seu espanto, viu, refletida na vitrine, sua gravata torta!

“meu deus do céu, o que aconteceu? preciso acertar esta gravata. mas fazer isso aqui, na vitrine da loja, é bem constrangedor. tenho de ser rápido!”

mas o problema não era a gravata. depois de várias tentativas de arrumá-la, o que o fez suar um pouco, notou que a camisa estava com os botões nas casas erradas, e por isso a gravata não parava verticalmente, como deveria.

tudo começava a ficar confuso, por que a camisa toda mal abotoada, se checara no apartamento? ah, ele andava mal assim, não havia dúvida. mas o jeito era acertar isso em um local privado, longe da vitrine da loja onde era cliente. caminhou, sem saber ao certo aonde ir. o tempo passava e ele não queria se atrasar. em todos esses oito anos, jamais se atrasara, e já fora até mencionado como exemplo pelo chefe por isso. abaixou a cabeça discretamente enquanto caminhava, viu uma ponta da camisa solta fora da calça. meu deus, ainda mais esta! camisa fora da calça e sem abotoar na última casa! onde andava com a cabeça! tentando ser discreto, enfiou a camisa para dentro da calça.

mas não era possível ser discreto; ele era uma figura descomposta, horrenda. seu cabelo já estava despenteado devido ao passar de mãos desesperado. seu olhar revelava um maníaco. tinha de acertar os botões da camisa nas respectivas casas.

lágrimas assomaram seus olhos, e era só o que faltava, mesmo. passou por um grupo de hippies sentados, vendendo diversos artefatos, e julgou: “lixo! essa gente tinha de ser tirada daqui”.

parou diante de um bar. notou que havia um banheiro. pediu para usar. um real, se não for consumir. mas não tinha um real. implorou ao mal barbeado dono do bar, seria rápido. “claro, cagar e emporcalhar meu bar é sempre rápido. cai fora!”

nunca se sentira tão humilhado, e por isso tomou a decisão mais difícil daquela manhã: arrumar a camisa enquanto caminhava, ali na rua, mesmo. tirou a parte que estava dentro da calça e desabotoou o primeiro botão errado. suava muito, suas axilas já estavam molhadas. totalmente imerso em sua tarefa, mal percebeu quando o jogaram no chão e o arrastaram para um beco.

“ladrões”, pensou. pensou errado. eram policiais. choveram perguntas. quem é você, onde mora, onde trabalha, se entra às nove no banco, por que ainda não está lá, porque estava despenteado, porque estava suado, e leonardo não tinha resposta para pergunta alguma.

finalmente, um dos policiais perguntou porque a gravata estava torta. ele explicou: o problema era com a camisa. os dois policiais se olharam; o primeiro borrifou spray de pimenta nos olhos do suspeito, o segundo o chutou, e diziam palavras horríveis. chamaram leonardo de vagabundo, o que foi, talvez, a pior humilhação, pois leonardo era um ótimo funcionário, em breve seria gerente, tinha uma noiva, se casaria na igreja e no cartório, vagabundo por quê?, mas não retrucou. apenas pediu: “por favor, me deixem arrumar a minha camisa e a gravata, é tudo um engano”.

como não era tudo um engano, foi levado à delegacia. no banco, disseram não ter nenhum empregado chamado leonardo. o telefone que ele passou da família freitas, que haveria de recebê-lo como filho após seu casamento com luciana, foi atendido por uma mulher muito vulgar que gritou que ali não tinha nenhuma luciana, não senhor, e que prestasse atenção aonde ligava que ela tinha mais o que fazer. perguntaram por sua família. súbito, leonardo, muito surpreso, notou que não se lembrava de absolutamente nada de mãe, pai, irmãos. só sabia que vivia sozinho. não recebia visitas, pois não queria ser assunto no condomínio. e mais uma vez implorou que lhe deixassem arrumar a camisa; com a camisa arrumada, tudo se ajeitaria. já impaciente, o delegado disse um “que seja” e leonardo pôs-se a desabotoar cada um dos botões. contou sete. mas na hora de abotoá-los da forma correta, começando de baixo para cima, notou que havia oito casas.

ele não soube se explicar para o delegado, que o manteve detido até que uma ambulância o levasse para uma casa de saúde. lá, o rapaz tinha uma única tarefa, o tempo todo: desabotoar e depois abotoar a camisa, até que os botões começassem a cair. quando caiu o último botão, teve alta. e não se lembrou de nenhum lugar para onde devesse ir, então sentou-se na calçada ao lado de uns hippies – eles estavam em todo lugar. um deles lhe deu uma camiseta desbotada com cândida. combinou com o par de sapatos marrom, já menos polido.