7 de junho de 2016

O abismo presente em Ana de Amsterdam

A literatura brasileira parece, nos últimos anos, ter elencado como protagonista o monólogo interior, a angústia, a sofreguidão, sem se tornar medíocre, como apenas um desabafo choroso. Essa ideia de se perder em si, vem sendo escrita, também, não apenas pelos autores brasileiros, mas em outros que tem a língua portuguesa como língua materna, como é o caso de Valter Hugo Mãe e Ana Cássia Rebelo, aquele português, essa moçambicana.

Nas obras de Valter Hugo Mãe, é perceptível a imagem de um abismo interior, em que seus personagens muitas vezes se encontram. A tristeza, a melancolia são tratadas com maestria, e toda a angústia que um ser humano pode possuir está ali, presente nas linhas escritas pelo português, que faz com que entendamos que o lamento também pode ser aproveitado de certa forma para se caminhar o destino já estipulado pra nós, provavelmente.

Indo numa mesma direção, mas tratando mais especificamente sobre a depressão, encontra-se o livro de Ana Cássia Rebelo, Ana de Amsterdam, que foi baseado totalmente em seu blog (http://ana-de-amsterdam.blogspot.com.br/). Um diário cibernético tomou conta do livro impresso e atingiu milhares de leitores pelo mundo agora, mais precisamente o Brasil.

O livro de Ana é uma primazia. A sua escrita, aparentemente sem preocupação, nos leva até o cotidiano de uma moça, mãe, que possui depressão profunda. Por meio dos fragmentos textuais do livro, todos datados, com dias e ano, ficamos sabendo um pouco mais de como aquela mulher se encontra perante o mundo, ela não possui um abismo dentro de si, ela não está na frente de um abismo, ela é o próprio abismo.

Li algures que, em 20% dos casos, a depressão se torna uma doença crónica sem remissão. Ao contrário do que o meu psiquiatra diz, a minha depressão não é reactiva. Engana-se redondamente o meu psiquiatra, o tal que fuma charuto e está sempre excessivamente bronzeado. A minha depressão é crónica. A tristeza em mim é um estado latente. Conheço-a desde sempre. Cresceu comigo. É uma espécie de melhor amiga que se impõe nos meus dias. De vez em quando, a amiga-tristeza hiberna dentro do meu corpo durante longos períodos. Acomoda-se num canto qualquer e dorme, enroscada. Oiço-lhe o ressonar, brando e úmido, de animal manso. Não me incomoda, mas sei que está lá. Outras vezes, a amiga-tristeza desperta e, como um animal acicatado, transforma-se em fúria, ira e dor. É uma dor invisível, de tal forma intensa que se sobrepõe a tudo e a todos. Como se mata uma amiga, a melhor, que vive dentro de nós?

 Ser esse abismo quer dizer conviver com coisas, dores, que muitos de nós não conseguimos compreender ou respeitar. É fato que esse é o mote do livro, mas notar como Ana foi salva, em vários dias, pelos seus filhos é de sentir certa catarse emocional que é impossível não mexer com o leitor.

A dor preenchida pelo desespero de não conseguir fazer nada constrói em Ana um desespero silencioso, mas que parece ter voz nos vários outros perfis de mulheres que ela vai contando ao longo do livro e que são de mulheres, todas elas, que estão ao seu redor, como parte da família ou como personagem do seu olhar espectador.

Em certo momento, ela diz:

A voz de Aninhas treme de ecitação: Não tenho medo da morte. Nunca tive. Desde cedo que a ideia da morte me conforta. Mas tenho medo da dor. Que é um medo menor. A dor, o medo da dor, humilha-me. Entorpeça-me os gestos. Não me atiro da janela do meu quarto porque tenho medo do momento do embate nas pedras da calçada. Aterroriza-me a ideia do meu crânio abrindo-se como uma melancia madura. Não me atiro à linha do metro porque me assusta o preciso instante em que o meu corpo será retalhado nos carris. Tenho medo da dor física. Tenho medo da dor mesmo sabendo que a sentirei por breves instantes. É por isso que preciso da sua ajuda. Preciso que me ajude a morrer.

Essa necessidade de ajuda, ao pedir para morrer, não quer que alguém a mate ou que lhe dê todos os sustentáculos para que ela se mate. O que ela deseja é não temer a dor física, pois a dor psicológica, a que poderia lhe ser mais insuportável parece tê-la consumido o bastante para que ela seja o seu próprio abismo. Ana já está conformada que irá morrer, que será comida pelos vermes, que verá seu corpo jazendo em uma caixa de madeira a sete palmos do chão, o seu medo não é de existir, mas apenas de sentir momentaneamente uma dor que não deseja.

Vendo assim, o leitor pode pensar que todo o livro é apenas um desabafo em que a sofreguidão de uma mulher se repetirá a todo instante. Engana-se. Não saberá que Ana também rouba livros, ou que se apaixona ainda por outros homens que não seu marido, que aparentemente não liga para o seu desespero interior. Não saberá dos sonhos que ela tem e que sendo Ana um abismo isso não a impede de amar. Perderá a oportunidade de conhecer, por fragmentos, a escrita de uma mulher que morre a outubro de 2014, e que acompanhamos sua história por cerca de oito anos.

Durante o percurso no tempo, montamos o seu quebra-cabeça, parte da sua história, mas continuamos sem entendê-la, ou sem compreender que, se o inferno são os outros, como queria Sartre, o abismo somos nós.