12 de maio de 2016

Inconscientemente premeditado

 

Entregaram-lhe primeiro o relógio e a aliança. Depois um saco de lixo preto que continha as roupas e os sapatos, seu marido havia se transformado naquelas poucas coisas e ela sequer havia tido tempo de processar a informação. Não foi assim que ela planejara, não era pra ter acontecido desse jeito. Como alguém que havia dormido ao seu lado na noite anterior, poderia agora estar morto?

Rita chegou em casa carregando o que haviam lhe entregado no hospital. Não lembrava como tinha chegado. Não sabia que horas eram, nem se fazia sol ou chuva. Sabia apenas que sentia frio, e uma sensação de aperto no pescoço que quase a impedia de respirar. Passou pelos cômodos de seu apartamento sem ação. Na falta de alguma alternativa decidiu deitar-se um pouco. Adormeceu antes de conseguir organizar os pensamentos.

Quando despertou sua irmã estava na sala ao lado do quarto. Ela falava baixinho ao telefone “... finalmente dormiu um pouco, lhe dei alguns calmantes. Sim, o enterro será amanhã, não sei que horas ainda, a Rita tem que liberar o corpo no IML, mas não está em condições...” foi então que Rita lembrou-se do ocorrido. O saco plástico preto continuava no canto do quarto onde ela havia deixado. Pôs a mão no bolso e encontrou o relógio e a aliança. “O que a Ana tá fazendo aqui?”, pensava. “Quem avisou o que aconteceu?” não se lembrava de ter ligado para ninguém, mas não estava surpresa com o fato de ter sido a sua irmã a primeira a saber, “aquela enxerida sempre querendo saber da vida dos outros, e já tá espalhando a tragédia, bem típico”.

Fingiu dormir quando a irmã se aproximou, a última coisa que queria nesse momento era ser consolada por Ana, sempre tiveram uma relação amistosa, mas Rita nunca confiou inteiramente na irmã. “Ela sempre teve inveja de mim, deve estar comemorando, conheço bem o cinismo. Ela que pensa que nunca vi os olhares dela pro meu marido, as risadinhas e as encostadas que ela dava sempre que tinha oportunidade. Agora está aí, se fazendo de boazinha, como se eu precisasse. Tenho que pensar num modo de fazer ela sair daqui.” Enfim chamou Ana no quarto e disse que precisava ficar sozinha por um instante. A irmã se recusou veementemente, queria estar ali para apoiá-la naquele momento. Rita odiava o olhar condescendente de Ana, e o tom de voz dela dizendo “imagiiiiinaaaa, tenho que ficar do lado da minha irmãzinha nesse momento”, tinha vontade de gritar palavrões à irmã, e dizer que ela era uma solteirona ridícula e que não ia deixa-la espezinhar em sua perda. Talvez prevendo a explosão da irmã, Ana cedeu e foi embora, mas não sem antes lançar com uma ponta de insolência a pergunta: “Você já avisou aos pais dele?”.

Rita sequer lembrou que tinha todo o protocolo a cumprir. Avisar os familiares, comprar o caixão e as flores, escolher a roupa do defunto, organizar o funeral, parecer bem asseada em um vestido preto e aceitar as condolências inúteis de tantas pessoas irrelevantes. Sempre achou os casamentos e os funerais um grande teatro, e Rita não era dada às peças dramáticas. Sabia que tinha um papel a cumprir, era a protagonista e tinha de se comportar como tal. Teria de receber todas aquelas pessoas, as que ela sequer conhecia, e também as que secretamente desprezava. As poucas com quem se importava também estariam lá, é verdade, mas fazendo uma obrigação que ela não gostaria de tê-las imposto.

A morte era injusta. Não para quem vai, mas para quem fica, e mesmo num momento de desespero tem que continuar cumprindo com toda a convenção social sem propósito algum. Eles diriam “meus pêsames” e apertariam a sua mão. Ela diria “obrigada” e a situação incômoda não mudaria. Alguns diriam: “coitado, tão jovem e tão bonito!” e ela teria vontade de responder: “se fosse velho e feio não teria importância?” mas apenas assentiria com a cabeça num gesto pobre e triste.

Rita pediu que Ana tomasse as providências mais urgentes. Deu uma lista de telefones de pessoas que precisavam saber a notícia. Além da família, as pessoas do trabalho e amigos. “delicie-se espalhando a tragédia”, pensou, mas não disse. Tentou parecer agradecida para a irmã e foi preparar para si um chá de noz moscada, enquanto Ana saída apressada para a tarefa recebida.

O ritual de fazer o chá já a acalmava. Ralar a noz com um ralador manual, sentir o aroma pelo ar, depois a adição da água, que fazia o vapor delicioso se espalhar pela cozinha, uma colherzinha de açúcar mascavo e estava pronto, apenas esperava que o pó se depositasse no fundo da xícara, não costumava coar o chá. Rita gostava de aspirar ao vapor com aquele cheiro bem familiar a cada gole. Tomava o chá ainda muito quente, adorava a sensação do céu da boca queimado, especialmente quando formava aquela película solta que podia sentia com a língua, isso, não sabia por que, lhe fazia pensar com clareza. Aprendeu com a sua avó que a noz moscada era boa para acalmar. Na verdade a avó usava a noz moscada como remédio para tudo.

Deitou-se novamente. Ainda podia sentir o cheiro dele nas fronhas recém usadas. Encontrou alguns fios de cabelo dele na cama. Pela primeira vez naquele dia teve vontade de chorar. Só então havia percebido que não derramara uma lágrima desde que encontrou o marido inconsciente no banheiro do quarto. Chamou o SAMU, ainda impassível, sabendo que tinha de passar as informações com calma para que o atendimento fosse eficaz. Acompanhou-o até o hospital. Fez o internamento preenchendo todos os formulários. Um branco para o hospital, um verde para o plano de saúde, amarelo para a empresa que ele trabalhava, uma cópia para arquivo, outra para ela. Para que servia tudo aquilo? Quem examinava aqueles documentos depois de preenchidos? Será que havia alguém que os catalogava no hospital? Ela imaginava uma sala sem janelas, cercada de arquivos de aço, onde o moço de idade indefinida, óculos de aros grossos e um sorriso de canto, organizava os arquivos por doença. ‘A’ para os abcessos, ‘B’ para as bronquites... Imaginava-o rindo de casos mais bizarros e do fato do quão ínfimo nós somos e que de uma hora para outra, assim como se nada fosse, todo nosso ser e histórias, quem fomos e quem queríamos ser, os sonhos, vitórias e fracassos se resumem e se acabam com um documento dizendo a causa da morte, catalogado não muito cuidadosamente nos fundos de um hospital amarelo, numa sala sem janelas, por um rapaz de óculos e sorrisinho irritante.

Rita devaneava na sala de espera. Ouvia a correria dos médicos do outro lado do biombo. Quando a correria silenciou ouvia apenas a notícia “não muito boa” como o médico havia se referido. O marido morrera, provavelmente de choque anafilático, algo não muito comum nos dias de hoje, o médico seguia lhe dizendo e lhe explicando coisas que ela não ouvia. Aquela manhã parecia ter acontecido há anos atrás.

A cama com o cheiro e a ausência dele era insuportável. Resolveu sentar no sofá da sala que havia acabado de decorar, tinham reformado o apartamento e ela cuidara de todos os detalhes. Estava tudo lindo e exatamente como ela queria. Os dois estavam felizes. Ele havia subido de cargo, e ela ia bem no seu emprego. Planejavam viagens e filhos. Ela sorvia seu chá de noz moscada calmamente em sua sala perfeita. Sorvia também um pouco de solidão a cada gole do chá. Já tinha ouvido falar que uma dose alta de noz moscada poderia até matar, mas não acreditava nisso. Na salada que fez na noite anterior testou um novo molho que aprendeu na internet, e resolveu moer duas nozes de moscada para dar um sabor especial. Sabia que uma noz era suficiente para causar alucinações, queria ver o que duas nozes seriam capaz de fazer. No fundo ela sabia que podia ser perigoso, mas não acreditava realmente que fariam mal. O marido adorou a salada, o novo molho e o gosto diferente que sentia. Nunca havia provado nada igual, um leve sabor agridoce, uma mistura de pimenta e canela, algo indescritível. Amava tanto aquela mulher, e amou um pouco mais especialmente naquela noite. Ela estava linda, preparou um jantar sofisticado e delicioso, sorria com seus dentes muito brancos, ele não poderia se sentir mais satisfeito que naquela exata noite, naquele lampejo de consciência do quanto era feliz, e desejava envelhecer ao lado dela. Ela, não se sabe se por medo, precaução ou simplesmente inconsciência, não tocou na salada naquela noite. Descobrira na manhã seguinte que o marido era alérgico à noz. E terminou sem saber, portanto se ele morrera da alergia, ou da toxidade da especiaria.

Após o enterro, e de todas as formalidades tão difíceis de serem cumpridas, ela descansava pensando se duas nozes de moscada seriam fatais a qualquer um ou apenas a quem era alérgico, e que seu marido, pessoa tão extraordinária, que despertava interesse em todos ao seu redor, inclusive da irmã, não passava agora de um arquivo em folha amarela, registrado na letra C.