8 de março de 2016

O sagu

De um lado para o outro. Rolava na cama há mais de uma hora. Bem mais de uma hora. Não tinha pregado os olhos. A madrugada já ia alta. Melhor, talvez, tomar um copo de leite morno. Não, leite morno é coisa de velho. Ainda era jovem. Não tanto quanto gostaria. A adolescência dos filhos comprovava que o tempo era implacável. Mas essa insônia inconveniente tinha vindo totalmente fora de hora. Não era mulher de perder o sono. Ao contrário, era bem resolvida, independente, prática, não era mulher de perder nada. Esperaria mais vinte minutos. Se o sono não chegasse tomaria uma providência.

Em vinte minutos a cama parecia ter espeto. Não adiantava lutar. Levantou-se. Olhou-se no espelho. A camiseta velha fazia as vezes de camisola. Achava charmoso mudar a utilidade das roupas. Vestido velho virava saída de praia, uns bordados diferentes e calças antigas viravam peças de luxo, camisetas démodé ganhavam cortes diferenciados e transmutavam para a última moda. Olhou-se com mais cuidado. Estava ridícula. Escarafunchou o armário até encontrar a camisola. Linda, usada poucas vezes, quase tinha sido esquecida. Ia usá-la. Não era um momento especial, mas assim o faria. Logo se pôs linda. Soltou os cabelos. Perfumou-se. Sentia-se bem.

A casa estava escura e silenciosa. Os meninos estavam dormindo. Meninos não, rapazes já. Rapaz. O mais velho deixara o quarto disponível para o pai, que tinha pedido para ficar uns dias por lá. Todos dormiam. O caçula e a incômoda presença do ex. Por que era incômoda? Eram adultos, separação bem resolvida, amigos ainda. De mais a mais a casa era dela, podia levantar a hora que quisesse e se vestir do jeito que desejasse. Do jeito que ele a desejasse. Que ideia tosca! Isso não era nem passível de ser pensado. Eram bons amigos, ele era um bom pai, parceiros na educação dos filhos. Bobagens pensadas pela mente insone.

Abriu a porta devagar. Tudo escuro, silencioso e seguro. Atravessou o corredor em direção à cozinha. A janela aberta deixava o vento noroeste e o cheiro de maresia preencherem o ambiente. Foi até a janela inspirar. O cheiro de mar sempre a acalmava. Pena que a hora não era propícia para um mergulho. Precisava dormir. O dia seguinte viria em breve cheio de suas rotinas. Lembrou-se da garrafa de whisky doze anos, presente do tio, despachante aduaneiro. Duas pedras de gelo, dois dedos generosos de bebida. Imaginou–se num filme noir dos anos quarenta. Dançou na sala. Sentia-se bem.

– Você ainda gosta de dançar.

A voz grave e quase em sussurro a assustou. Era ele. O ex. Parou sem jeito no meio da sala.

– Continua. Eu não queria interromper.

Ela sorriu. O whisky a deixara um pouco mais à vontade.

– Bobagem... é que perdi o sono.

– Eu também.

A afirmativa imediata a surpreendeu.

– Prometi fazer um sago pros meninos e esqueci de ver se tem vinho.

– Tem sim.

– Será que tem canela?

– Tem sim.

– E cravo?

O cravo. Caramba, quem é que lembra de cravo uma hora dessas?

– Cravo eu não sei...

– Sem cravo não fica bom.

– Não mesmo.

Foram os dois atrás do cravo. Tinha um pote com alguns.

– Acho que vou adiantar. Assim quando os meninos acordarem ele já está gelado.

E começou a ajeitar os ingredientes do sagu. Deixou as bolinhas de molho, separou o cravo, a canela, o açúcar a
panela grande. Organizado como sempre.

– Tem que ficar de molho um tempo, mas não muito senão empapa.

Sabia tudo de culinária. De negócios. De educação. Só não tinha sabido como prendê–la.

– Vou trazer um whisky pra você.

Conversaram um pouco, animados pelo álcool, comedidos pelo filho que dormia. Eram parceiros. Dividiam responsabilidades. A conversa estava boa, cheia de recordações. Mais whisky pra dar o tempo do molho. Risadas abafadas.

– Acho que já deu o tempo. As bolinhas têm que estar transparentes.

Estavam, as desgraçadas. Ele começou o ritual. Bolinhas ao fogo, regadas com vinho tinto barato.

– Me ajuda? – perguntou num estágio entre educado e atrapalhado com a quantidade de ingredientes que estavam distantes de si.

– Claro – tinha que ser gentil, afinal era o pai de seus filhos.

– Me passa o açúcar.

Passou o pote.

– A canela.

Passou.

– O cravo.

Passou.

– Tem que mexer direito, senão gruda.

Continuaram a conversa, o whisky e um bem-estar estranho

– Mexe um pouco pra mim? Vou pegar mais bebida pra gente.

Ela assumiu o controle da panela inusitadamente feliz para uma madrugada insone no meio da semana. Ele voltou logo com os copos cheios. Aproximou–se. Pegou em sua mão.

– Tem que ser sempre pro mesmo lado, senão desanda.

Com cuidado ele a ajudou na arte secular de fazer sagu de vinho. Estavam em silêncio. Estavam próximos. O cheiro do sagu subia pela cozinha. Podia dizer que inundava a casa. Podia jurar que preenchia o mundo com seu aroma de cravo e canela. Ele desligou o fogo.

– Já está bom.

Ela permaneceu onde estava, olhando a panela de sagu que ainda borbulhava.

– Agora é só esperar esfriar pra colocar na geladeira.

Sentiu as mãos dele na sua cintura. Sentiu o ar faltar. E ele não disse mais nada, como nunca dissera. Pelo álcool, por saudade, por necessidade ele a beijou. Pelas lembranças, pela vontade, pelo saber um do outro se amaram por tudo que ficou de bom entre eles e a fragrância de sagu recém feito na panela.

***

Alguns milagres cotidianos acontecem e ela não perdeu a hora naquela manhã. Levantou–se ainda zonza do whisky e do que supunha ter acontecido. Sabia ter sido real, mas era conveniente que não fosse. Então, não seria. Tomou um banho morno e rápido. Soltou os cabelos, Pintou os lábios de vermelho. Escolheu pérolas para adornar o colo e as orelhas. Anéis gigantes para os dedos. Decote generoso para os seios. Olhou-se no espelho. Sorriu. Sentia-se infinitamente bem.