3 de março de 2016

LIVROS ABANDONADOS

 

Se o título desta crônica lhe fez pensar em bibliotecas públicas no Brasil, em livros trancados em almoxarifados, longe dos olhos e mãos de alunos em inúmeras escolas públicas brasileiras, confesso logo de cara: a mim também, e isso é uma questão profunda, séria e triste da nossa realidade.

Mas a crônica de hoje é daquelas que fazem meus leitores irem ao facebook – sim, porque comentários hoje em dia têm de ser diretamente com o autor, que ficou muito mais facilmente acessível desde que as redes sociais foram criadas. Chega de editores, agentes, secretárias e familiares atravessando o caminho! (Afinal, essas pessoas sempre poderiam fazer uma peneira do que iria ou não chegar às mãos do escritor, algo bem parecido com o que era feito na época da censura). Viva a liberdade de ir esculhambar ou se declarar para o autor em tempo quase real! Bom, como eu dizia, a crônica de hoje é dessas que têm por natureza uma ponderação que beira uma provocação, o que leva os leitores a rapidamente fazerem uma busca por meu nome – no caso de já não serem meus amigos de facebook – para me dizer exatamente o que pensam de mim: ou que eu sou um amor, ou que eu sou um... bom, essa seria a hora do som que corta o palavrão.

Em algumas dezenas de crônicas atrás, eu já disse que abandono livros ruins sem dó. Cada dia que passa, cada ano que termina, eu concluo mais fatidicamente que a vida é mesmo um sopro. Então, por que raios eu vou me obrigar a terminar de ler um livro que não presta? Não vou, eu não mereço me autoflagelar. A leitura não caminha, o livro parece que cresce a cada página lida? Já era.

Por isso, hoje trago uma listinha, bastante inocente, até, de algumas dessas obras que ficaram pelo caminho. Vamos lá.

Nos anos 90 eu era um adolescente caminhando para a fase adulta da vida. Tinha acabado de ver o filme O bebê de Rosemary, um verdadeiro clássico, quando descobri que existia um livro com o mesmo nome, no qual o filme havia sido baseado, escrito por uma tal de Ira Levin. Comprei o livro, li-o por completo, achei a obra excelente e depois fui buscar mais coisas da autora. Comecei por pesquisar pela própria escritora. Veio aí minha primeira decepção – sabe-se lá por que fiquei decepcionado com isso: Ira Levin era um homem. Passado este impacto, adquiri um livro chamado Os meninos do Brasil. Eu, sempre um patriota inveterado, não resisti àquele título. Segunda decepção: eu havia saído de uma obra obscura, gótica, onde tudo era revelado em nuances, através de sombreamentos... para um romance metido a tecno-thriller, com um enredo que envolvia nazismo e muita embromação. Desisti logo nas primeiras cinquenta páginas. Depois disso voltei a ler o Ira Levin, e li outros ótimos livros dele. Mas Os meninos do Brasil, nunca mais. E para quem perguntar, diga que não sinto saudades.

caliceOutro que lancei à minha fogueira imaginária foi Harry Potter e o cálice de fogo. Sim, eu sei da importância desse personagem para, arrisco a dizer, as vendas de livros numa escala mundial hoje em dia. Sei que essa série formou mais leitores do que quaisquer outros livros antes, mas não deu. Eu já havia começado a leitura do primeiro livro, Harry Potter e a pedra filosofal, meio sem vontade. Fantasia não é a minha. E não foi por falta de tentativa: eu já havia tentado ler As crônicas de Nárnia, O senhor dos anéis e outros vários títulos do gênero que fizeram sucesso depois desses – mas todos tiveram o mesmo fim. Foram largados. Mas antes que você diga que eu sou como uma mãe que jogou um recém-nascido num bueiro, eu me defendo: li os três primeiros livros da série. Aí a autora foi inventar de triplicar o número de páginas do quarto volume, que é justamente onde se encontra este tal de Harry Potter e o cálice de fogo, e o que já não estava sendo muito prazeroso tornou-se um fardo. Quando chegou numa tal de, salvo engano, Copa de Quadribol ou algo assim, com descrições longuíssimas desse esporte jogado pelos bruxos, joguei o livro do outro lado do quarto, para nunca mais.

Falemos agora de José Saramago. Antes que você queira me crucificar por estar falando mal de um livro do único Prêmio Nobel de Literatura em língua portuguesa, calma, deixe-me explicar: eu desisti do livro, lembra? Então não tem como eu saber se a coisa ficou boa da metade pro fim, combinado? Beleza, pois continuemos. Eu comecei a ler Saramago por, talvez, a principal porta de entrada do castelo, Ensaio sobre a cegueira. Como não me sentir arrebatado pela obra desse homem? Você pega tudo que existe de mais sórdido, demente e doentio no ser humano e joga dentro de um livro formidavelmente bem escrito e dá em quê? Ora, dá no que deu, um livro que justifica qualquer prêmio literário do planeta (embora, como sabemos, o Nobel é dado pelo conjunto da obra, não por um único livro). Anos se passam, nos quais li muitos outros livros do autor, até que surge Ensaio sobre a lucidez. Lembro que li uma resenha em algum lugar na época da internet discada que o livro revisitava personagens do primeiro livro. Fora que se tratava, novamente, dos problemas coletivos que Saramago parecia estar gostando de trabalhar em alguns romances recentes. Comecei a ler, empolgado. Massa, a Mulher do Médico de novo! Nossa, a... e parou por aí. O livro ganha uma narrativa sóbria demais, com uma intensidade crítica muito às claras, e isso começou a me incomodar. Ainda retomarei este livro, e possivelmente gostarei dele. Mas ele não voltou a me chamar desde então. Vamos ver quem vence a disputa contra o tempo, o meu prazo de validade ou o chamado do livro, lá na prateleira.

Essa lista não estaria completa sem os representantes do meu amado Brasil. Pois vamos a eles. No caso, elas.

quimeraAlguém de vocês já leu A última quimera, da Ana Miranda? Que livro chato. Mas que livro imensamente chato. Comecei a lê-lo por gostar muito do personagem principal da obra, o poeta Augusto dos Anjos. Mas as vãs tentativas de lirismo da autora, numa obra que pretende mostrar os muitos questionamentos que o poeta se fazia, aliando à história do país, o que era pra ser um grande livro se torna um livro interminável. Tão interminável que eu não consegui levá-lo adiante.

Por fim, um pequeno clássico da literatura brasileira: As meninas, de Lygia Fagundes Telles. Eu não sei se alguém aí leu este livro, mas o certo é que, de tudo que já li da obra da autora, e não foi pouco, esse livro foi aquilo que não consegui digerir. O tema da ditadura é sempre de grande relevância, não há dúvida. Mas acompanhar aquelas três meninas com seus dilemas envolvendo seus machos, não me pegou. A sensação era que eu estava lendo o roteiro da série Confissões de adolescente, aquela série antiga que passava na TV Cultura. Pra mim, Lygia é infinitamente melhor como contista do que como romancista. É no conto que ela mostra todo o seu enorme poder narrativo e sua verve profícua. E é para sempre na lembrança dos seus contos que eu vou me agarrar quando quiser pensar no nome dela de uma maneira positiva.

Menção Desonrosa: o livro que eu terminei e não deveria ter terminado.

Mas na literatura nipônica não tem como errar, certo? Certo de onde, criatura, só o que tem é livro ruim escrito por japonês. O melhor exemplo de todos: Um grito de amor do centro do mundo, de Kyoichi Katayama. Eu não sei o que eu tinha na cabeça quando comprei um livro com esse título (tá, isso parece preconceituoso, eu sei, mas um título desses já dá pra deixar o leitor mais desconfiado de orelha em pé, dá não?), mas foi publicado pela Alfaguara, uma editora que eu prezo muito, eu gosto de descobrir coisas novas... arrisquei. E olha, é aquele momento do “se arrependimento matasse...”. Que bomba! Sabe aqueles livros em que alguém junta todos os clichês de livros, filmes e novelas dos últimos trinta anos e resume tudo num outro livro, filme ou novela? Pois é o caso desse livro, que vendeu milhões de livros no Japão (a última contagem informa mais de 4 milhões de exemplares dessa porquêra vendidos), e isso num país que a gente pensa que é repleto de gente sábia o tempo todo. É não, meu povo, é não. Pois bem, o livro conta a história de dois jovens que se conhecem na época do colégio, se apaixonam e, é claro, um deles vai morrer. De leucemia. Agora olhe bem na minha cara e diga: quantas vezes você não já viu ou leu isso na vida? Eu também perdi as contas. Sem contar que a narrativa do senhor Katayama é daquelas coisas de fazer todas as senhoras que escrevem romances melosos se envergonharem. É sofrível, sofrível. E o que é pior: deste, eu não desisti, e vou dizer por quê: é um livro curto, fácil de ler e que, se não acrescenta, também não tira nada de ninguém. Eu queria saber, talvez por alguma curiosidade mórbida, como é um best-seller japonês. Agora já estou sabendo. Chega.

Talvez um dia eu faça uma parte dois dessa crônica, contando causos de abandono de outros livros. É um exercício pra nos fazer pensar nas razões que nos levam a rejeitar uma obra completamente, e para que possamos entender nosso eu leitor melhor – que livro nos motivam e impulsionam a levar a leitura adiante, que obras temos maior tendência a ler, e daí escolhermos melhor com quais leituras gastarmos nosso tempo para fazê-lo de maneira mais acertada, já que a alma pode até ser imortal para alguns, mas o corpo se vai depressinha, e é melhor saber fazer as escolhas na vida, sejam as leituras, seja o que for. Ninguém cancela, em retrospecto, aquilo que viveu e naquilo em que acreditou, mesmo que tenha sido mentira. Por isso que aqui, a ordem da casa é largar tudo o que não presta e ser feliz.