19 de janeiro de 2016

ILUSÕES PERDIDAS: UM MONUMENTO LITERÁRIO

Não é exagero afirmar que Honoré de Balzac (1799-1850) foi fundamental para a consolidação do gênero romance. Junto com Stendhal, é considerado o precursor do realismo moderno, já que, em suas obras, pela primeira vez representa-se a vida contemporânea e cotidiana. Precursor porque Balzac ainda cria personagens “maiores que a vida”, característica que se desfará anos mais tarde com Gustav Flaubert. Nunca é demais lembrar que o Realismo é rebento do Positivismo, escola filosófica fundada por Augusto Comte no início do século XIX, que pregava o grande poder da ciência e da razão. Para Comte, o mundo está organizado de maneira lógica e, além disso, suas leis gerais são captáveis pela racionalidade.

Balzac era de uma produtividade impressionante. Em cinquenta anos de vida, escreveu em torno de 90 romances que, em conjunto, receberam o nome de A Comédia Humana. Alguns críticos apontam que seus livros, muitas vezes, foram feitos às pressas, não recebendo o merecido tratamento estético. Sobre isso há, inclusive, uma anedota: se Balzac tivesse o mesmo cuidado que Beckett, por exemplo, com a linguagem, não teria escrito um terço dos seus livros. Obviamente, não é lícito comparar escritores de épocas tão distantes, com intentos literários tão distintos. Além do mais, Balzac foi um dos primeiros escritores profissionais da história, recebia por obras escritas: eis um dos motivos de tamanha produção.

Entremos propriamente no romance. Se, em algumas obras balzaquianas existe descuido, esse não é o caso de Ilusões Perdidas. Escrito entre 1835 e 1843, tem personagens complexas e uma inteligência narrativa de fazer qualquer escritor iniciante repensar sua carreira. Alguns o classificam como romance de costumes. Só que ele é muito mais que isso. É uma aula de literatura em quase 800 páginas. Contudo, algumas objecções estéticas podem emergir. Elenco três: excesso de descrições; didatismo maçante em algumas passagens; uso do “telling” em vez do “showing”. Na verdade, somente esta última poderia, de fato, ser passível de crítica. Como se sabe, literariamente é muito mais rico colocar os personagens em ação do que contar o que eles são. Se um autor intenta mostrar que determinada personagem é caridosa, cabe a ele colocar essa personagem em atos de caridade (ajudando uma pessoa faminta, por exemplo) em vez de simplesmente dizer que ela é caridosa. Mesmo assim, são poucas as vezes que Balzac faz uso do “telling”. As outras duas críticas são anacrônicas: no início do século XIX, não existiam recursos audiovisuais de informação. Portanto, o leitor precisava (e gostava) dos detalhes, tanto dos ambientes quanto das personagens. Em relação ao didatismo (explicar o processo de fabricação do papel e os tributos de promissórias não pagas, por exemplo) vale o mesmo: era preciso informar o leitor para que o contexto fizesse sentido; para que a obra fosse inteligível.

Discutidas as objecções, mergulhemos nos inúmeros méritos. A sociedade da primeira metade do século XIX não escapa ao estilo judicioso de Balzac. E aqui, logo de início, é possível traçarmos uma relação, em dois níveis, com Jean-Jacques Rousseau. Primeiro: é famoso o adágio deduzido da obra rousseauniana de que a sociedade corrompe o homem. Sem entrarmos em minúcias conceituais, podemos dizer que este preceito está presente em Ilusões Perdidas, inclusive na vida provinciana: o peso das instituições é descarregado sobre o indivíduo. Ambição, hipocrisia, vaidade e avareza são retratadas com mordacidade. Em segundo lugar, é possível destacar a crítica ácida ao Romantismo (crítica, inclusive, que rendeu troca de pauladas entre Balzac e seu “padrinho” literário Victor Hugo): o êxtase e o devaneio, típicos da escola romântica, são massacrados pela dura realidade material. O choque entre imaginação e cotidiano (regido pelo interesse e pelas necessidades físicas), presente nas Confissões de Rousseau, se mostra no romance através de Lucien: um jovem poeta provinciano, seduzido pelo brilho da capital, que faz uso de sua extrema beleza para ascender socialmente. Todavia, tal beleza só abre as portas da antessala do sucesso. Bem verdade que ele é talentoso: tanto o livro de poemas (As margaridas) quanto o romance (O arqueiro de Carlos IX) são bem avaliados por alguns parisienses letrados. Incitado pelos elogios, Lucien entra na carreira jornalística para apressar os passos da glória. Eis a oportunidade para Balzac carregar o discurso contra a imprensa.

Além de dono de tipografia, Balzac trabalhou em alguns jornais, onde pôde espiar as frestas desse canal de comunicação. Frestas emboloradas e fedorentas: artigos encomendados para alavancar ou derrubar alguém, colunas sociais com futilidades para todos os gostos, a literatura subjugada a interesses pessoais e econômicos etc. Aliás, sobre esse ponto, interessante trazer à tona uma fala do jornalista Vernou:

 – Nós somos negociantes de frases e vivemos de nosso comércio. Quando você quiser fazer uma grande e bela obra, um livro, enfim, poderá colocar nele os seus pensamentos, sua alma, amá-lo, defendê-lo; mas artigos, lidos hoje e amanhã esquecidos, esses não valem a meus olhos senão aquilo que por eles nos pagam.

 E também uma de outro jornalista, Blondet:

 - Se existisse um jornal dos corcundas, ele provaria dia e noite a beleza, a bondade e a necessidade dos corcundas. Um jornal não é mais feito para esclarecer, mas para adular opiniões. Assim, todos os jornais serão, mais cedo ou mais tarde, covardes, hipócritas, infames, mentirosos, assassinos; matarão as ideias, os sistemas, os homens e florescerão exatamente por isso.

 Tais imundícies do jornalismo, representadas sobretudo por Lousteau (responsável pelo início da carreira jornalística de Lucien), são contrapostas à dignidade dos membros do Cenáculo, espécie de reduto moral do livro, liderado por Daniel d’Arthez, escritor com imensa capacidade de resistir ao que Theodor Adorno chamaria de Indústria Cultural cem anos mais tarde. Notemos como Balzac prenuncia magistralmente o conceito adorniano:

Lucien atravessou a Pont-Neuf, às voltas com mil reflexões. O que ele compreendera desse jargão comercial o fez adivinhar que, para aqueles livreiros, os livros eram como os bonés de algodão para os chapeleiros, uma mercadoria para se vender caro e comprar barato. 

Não apenas o confronto entre província e capital marca o âmbito social do romance, mas, sobretudo, o antagonismo entre aristocracia e burguesia. Lembremos que o contexto histórico suscitava tal debate: a Revolução Francesa acontecera meio século antes da escritura da obra, ou seja, a burguesia ascendia, enquanto a aristocracia entrava em decadência.

 O Homeau, assim, não obstante seu ativo e crescente poder, nunca passou de uma dependência de Angoulême. No alto, a nobreza e o poder; embaixo, o comércio e o dinheiro; duas zonas sociais constam ente inimigas sob todos os aspectos; difícil era assim adivinhar qual das duas cidades mais odiava à rival.

Todavia os valores aristocráticos ainda prevaleciam. Por isso Lucien queria recuperar o sobrenome nobre da mãe. Justamente por buscar os valores aristocráticos a todo custo, o jovem poeta teve suas ilusões perdidas. Na passagem a seguir, ele tece seus lamentos: “- É difícil ter ilusões sobre qualquer coisa em Paris. Aqui há impostos para tudo, vende-se tudo, fabrica-se tudo, até mesmo o sucesso.”

Negócios inescrupulosos pululam nas páginas balzaquianas. Destaque, para, além de Lousteu, os irmãos Cointet, donos da tipografia da província que leva David Séchard, amigo e cunhado de Lucien, à falência e à prisão. A astúcia dessas personagens, que fazem tudo para atingir seus objetivos, remete à “razão instrumental”, conceito de outro pensador da Escola de Frankfurt, Max Horkheimer: inteligência como cálculo, como simples ferramenta para alcançar determinado fim que sequer é posto à reflexão. Eis um trecho da fala de Lousteu a Lucien:      “- A consciência, meu caro, é uma dessas bengalas que cada um pega para bater no vizinho, e da qual jamais se serve para si mesmo.” O pragmatismo dos irmãos Cointet é contraposto ao cientista David, que se dedica praticamente em período integral a descoberta de um novo tipo de papel. Este tipo criado por Balzac ilustra o homem inventivo, mas com pouco tino comercial; é, assim, uma crítica ao “mundo real”, cruel com quem não sabe manipular as regras do jogo.

Ao longo do romance, várias ilusões são perdidas. Metonimicamente, trago mais duas: as da mãe e da irmã de Lucien, que o adoravam até descobrirem suas atitudes em Paris: o ídolo delas tinha pés de barro. E as de Lucien em relação a si mesmo, que passa da auto-adoração à cogitação do suicídio.

É evidente que, pelo propósito desse texto, temas passíveis de reflexão não foram discutidos. Dentre eles, menciono: o embate das gerações. A vingança do amor-próprio ferido. A avareza projetada no pai de David. As tantas formas do amor (a mulher mais velha que ama o adolescente, a atriz que ama o menino bonito, a esposa que ama o marido e o amor idealizado. Quanto a esse, destaque para a passagem: “A essência do amor verdadeiro oferece constantes semelhanças com a infância: a irreflexão, a imprudência, a dissipação, o riso e as lágrimas”).

Com esse aperitivo, espero que esteja proposto um convite à apreciação de Ilusões Perdidas, um dos maiores livros da literatura universal.

 

(Texto publicado originalmente no blog do escritor Menalton Braff)