12 de janeiro de 2016

A iluminura e a escuridão

A bem do bom e correto principiar, do bem arrumar as alíneas e as ideias, que diga eu o óbvio: falar de poesia é sempre conta de menos, sempre aquém do poetar escrito-alinhavado pelo poeta de quem se diz. Mas porque é da faina da coisa[1] que a poesia é contaminar de teima algumas almas, eis assim e por isto andarmos – as almas algumas –, “neste mundo em que grassa o mal imundo”[2], a dizer das vidas pela vista destes olhos (míopefabulantes) que sabemos.

A bem ainda do antesmente de qualquer começo, reconheço-me e irmano-me ao Poeta que aqui já logo virá: “nenhum verso dá / Conta do recado”; “A palavra é pouca” [Girândola, p. 66]. Não obstante, que temos além deste pouco para o povoamento do silêncio em que nos findaremos, inevitavelmente?

Pois bem: meu princípio de dizer não será ao redor, bordejamento alinhafiançado de doutos pensadores. Vou rente e claro.

E digo, a bem de qualquer justa apreciação: que o foguetório poético d’O Poeta de Meia Tigela (eis chegado o poeta que viria) é de Toda Poesia. Seu olhar poesista biografa o mundo sob todas as luzes e escurezas. Sua poesia é “sempremente” de corpo todo, de inteira devoção. Neste Poeta, não há respeito às paredes que confinam, às linhas que marcam fronteiras. Ele hagiografa, compõe devocionários, ama mulheres (ainda que “perfurocortantes” sejam [Girândola, p. 29]), desinventa fábulas, confessa dores (do coração seu e do vasto mundo), compõe “pseudosongs”, filosofa (ainda que troque “toda a filosofia / por uma bolacha maria”[3]) . Insulta até (por que não poderia o poeta?), em alto e bom calão!:

 

“Lutei contra o mundo

levei a pior

Ó

pelo menos

não perdi por W.O.

*

o status vá tomar no quo”

[Girâdola, p. 78]

 

Tudo isso é Girândola. O Poeta de Meia Tigela em estado de Toda Poesia. Amparo de beleza, luzifoguetório em estado ignéo, iluminuração de céu desenhado pelas vistas das almas olhantes.

GIRANDOLA

Assim como me ocorreu com o Miravilha: liriai o campo dos olhos[4], sua anterior escrevência, ao primeiro folhear, ao primeiro passar de páginas deste Girândola, me veio a “bagunça poética de gêneros, estilos e recursos” dita por Cid Ottoni Bylaardt (em prefácio [Girândola, p. 7]).

Mas ainda nesse folhear ligeiro, chego logo ao “Foguetório” (seu sumariar, seu ordenar do caospoético larval). E tudo então se arruma. As luzes de Girândola parecem então no céu compor seu desenho. A “bagunça poética” se ilumina. Ou melhor: é ela mesma uma iluminação criadora, que exige do leitor apressado justo seu desapressamento.

Ler O Poeta de Meia Tigela requer a alma em calma. É preciso o vagar do saber olhar, do bem saber ouvir sua costura delicadeada do verbo ornado para surpreender, para fazer tropeçar nossas imagens feitas, acostumadas de si:

 

“Há que lidar com a Palavra

Com suma delicadeza

Permitir brote a beleza

Para além de toda trava”

[Girândola, p. 36]

 

Depois de percorrer as iluminações de Girândola, redigo aquilo que, noutro lugar (noutra escrita), dito já havia: que O Poeta de Meia Tigela “é poesista de riso danado”, riso sibilado (quase sem o ser, quando sendo, em toda sua galhofa):

 

“Joga longe tuas muletas e vai”

Disse – o pastor? –

não, para o poeta

a linguagem”

[Girândola, p. 46]

 

Não há como não dizer: na escritura desse Poeta, seu texto é qual “pessoa desenvolta que mostra o traseiro ao Pai Político[5].

E mais redigo: sua “escrevência é ajuntosa”. É um seu valer-se, decerto para melhor nos armadilhar o senso comum, o pensar preguiçado. São maravilhamentos de seu uso: “natirrecentes”, “despróximo”, “humanimalidade”, “numerilógicas”. São pedras para o nosso (leitores seus) bom tropeço do senso dogmático-acostumado. E que se assevere: nesse fazer, nada é gratuito, tudo tem seu desconformado sentido exato e medido.

Vez mais, na poesia desse Poeta de Todo, tudo cabe e tudo é burilado em sua escrita: uma poesia em que tudo vive em estado “acontecente” [Girândola, p. 89]. Sua poesia é corda de dentro[6] , não é ornato de fora, de se mostrar à rua e guardar no fundo do armário ou de qualquer mobília empoeirada de casa.

O que me parece, ao final das contas, é que O Poeta de Meia Tigela é, em suma (pode o poeta ser suma?) uma dessas criaturas biologicamente poéticas, que nas substâncias (nas células-tecidos-ossos-ligaduras) que são a criatura-vivente, a poesia é uma dessas coisas que sustentam o ser em vida.

Mesmo que isso não lhe traga a calma paz dos justos, mesmo que o desassossego não lhe abandone:

 

“Tal desengano

no meu itinerário

só faço plano

 

funerário”

[Girândola, p. 58]

 

Chego a pensar que ao fabular sua girândola, ao dar seu foguetório de ornato à escuridão, O Poeta de Todo o faz na certeza de que “na noite da escritura não se pode dormir, sofre-se de insônia incurável”[7]. É qual se seu sofrer pudesse, no corpo etéreo da “Velha Amiga Escuridão” [Girândola, p. 71], se incendiar. Ele (O Poeta) grita: “– Loucos! [...] Vocês não / Sabem que o Mal é silente”? [Girândola, p. 71]. Quem o ouve?

Que lhe resta, então? “A agonia do ato de escrever”, essa que, ó pobre criatura!, “jamais conforta nem apazigua”[8]. Jamais. Resta este mundo, “solitária / Da qual não há quem fuja” [Girândola, p. 81]; resta seu quarto-todo-o-mundo (“Meu quarto é minha pátria” [Girândola, p. 81]), treva donde nasce, não obstante, todos os mundos que dá a ler (O Poeta) à “humanimalidade” [Girândola, p. 43] que o cerca e não o vê.

*

Isto dito, é altura de dizer que aqui procedi ao oposto dos manuais e dos preceitos, esses que recomendam, em escrituras destas (em que se diz de algum escrever alguma impressão leitora) trazer por escudo e couraça os doutos pensadores à frente. Foi meu querer partilhar ao princípio as minhas comovências ante a escrita do Poeta de Todo (Meia Tigela de nome) mais que alinhavar pensamentos e analíticas.

Não sendo, este que aqui está em escrita, senhor de qualquer reconhecida ciência das análises e escrutínios do fazer literário, sendo, eu que aqui me faço escrevente, tão só devoto amador desta arte de outrar mundos e viveres, não poderia por-me aqui a dizer/desdizer o ser/não-ser da poesia. Tão só me arvoro a deixar assente aquilo que, do alheio pensar, me pareceu justificado ajuntar, neste modo que faço, a minhas impressões leitoras.

Assim procedendo, resta-me ainda alinhavar o pensar de que, se “a escritura é isto: a ciência das fruições da linguagem, seu kama-sutra”[9], se confirma a impressão que me desenhou Girândola: a de que seu conceptor é oficiante de uma ars erotica da escrita. Não há como não se deixar seduzir por seus jogos de escrita (em conteúdo e forma).

Pela mão do Poeta de Todo, o texto se faz ígneo, lançador dessa “cintilação mesma que seduz”, que envolve. Artes de hábil aranha em sedosa teia. “Se gostássemos de neologismos”, poderíamos dizer, aqui dizendo junto ao rumor do pensar de certo pensador, que o texto d’O Poeta de Meia Tigela é uma “hifologia”.

O que seja, ela? Eis, pois:

Texto quer dizer Tecido; mas, enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a idéia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido nesse tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua teia.”[10] [Barthes, O prazer, p. 74-75]

Assim, pois, “hypos é o tecido e a teia da aranha”, a forma e o conteúdo, o dizer e o como, a escuridão e o foguetório que lhe alumia e se dissolve, que nasce e morre, que se torna escuridão – uma escuridão que, todavia, agora sabe da existência, mesmo e ainda que breve, fulgurante, efêmera de uma iluminura. Essa que a girândola do poeta, na sozinhez de seu quarto-pátria, fez fulgurar lá fora, no vasto corpo do mundo.

Se os olhos das criaturas darão por ela? Quem há de saber? Por tal, decerto, é que se diz que, virasse livro a vida de um poeta, biografia não haveria de ser, mas “anedotário” tão só [Girândola, p. 14]: a grafia da vida do poeta se escreve por dentro desses olhos, que o leem e que ele nunca (?) saberá.

 

 

Notas

[1] E ao dizer “coisa”, é claro que se diz uma impropriedade. Quer-se, com tal, justo chamar atenção à não-coisa que a poesia é.

[2] O Poeta de Meia Tigeja, Concerto nº 1nico em mim maior para palavra e orquestra. Poema [Fortaleza: Expressão Gráfica, 2010, p. 41].

[3] O Poeta de Meia Tigeja, Concerto nº 1nico em mim maior para palavra e orquestra. Poema [Fortaleza: Expressão Gráfica, 2010, p. 134].

[4] Alves de Aquino, Miravilha: liriai o campo dos olhos [Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2015].

[5] Roland Barthes, O prazer do texto [Trad. J. Guinsburg. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 63].

[6] Quem diz “corda” quer sugerir músculo-fibra-carne-matéria.

[7] Cid Ottoni Bylaardt, O império da escritura [Fortaleza: Imprensa Universitária-UFC, 2014, p. 131].

[8] Cid Ottoni Bylaardt, O império da escritura [Fortaleza: Imprensa Universitária-UFC, 2014, p. 131].

[9] Roland Barthes, O prazer do texto [Trad. J. Guinsburg. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 11].

[10] Roland Barthes, O prazer do texto [Trad. J. Guinsburg. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 74-75].