19 de novembro de 2015

Carta para o ausente

“O Antonino disse à Isaura que amasse, pelos dois, o pescador, que dele cuidasse como quem cuidava do importante destino do mundo. O toque de alguém, dizia ele, é o verdadeiro lado de cá  da  pele. Quem não é tocado não se cobre nunca, anda como nu. De ossos à mostra. E amar uma pessoa é o destino do mundo.” – O filho de mil homens, de Valter Hugo Mãe

 

Outro dia me peguei pensando em ti. No que fomos. Numa vida excluída em querências, e incluída em texto. Somos o registro do que fica. Sempre fomos assim, bichos carregando nosso esqueleto, esse negócio de aparência feia, flexível, mas resistente. Sempre me pareceste como numa cena de pré-morte, quando dizem que numa questão de segundos o filme de toda uma vida passa na cabeça e de repente, você deixa de ser, extingue-se.

E como já se vão muitos anos desde nossa partida um do outro, resolvi escrever.

Escrevo-te essas memórias para que elas não se percam. Escrevo-as para ti para que elas não se vão de mim, como se foram todos os nossos sonhos juvenis, que continuamos a sonhar até hoje, embora com outras pessoas - ainda que eu saiba que antes de tudo, antes mesmo de ti e de mim - sonhamos os sonhos de juventude, agora transmutada em pessoas outras, como forma de buscarmos um ao outro, como antídoto para a sobrevivência do nosso amor, que era uno, agora em corpos distintos.

Inicialmente, como qualquer devaneio, era algo quase sonhado: não existia cronologia, as imagens não se completavam, nem os sentimentos. Era tudo um peso amorfo, análogo a nada, num caleidoscópio sem lugar de pouso. Como pousa em algum lugar o tempo? O tempo, eu dizia, só pousa na eternidade, que era o que acreditávamos ter, ingênuos dos limites do corpo, da sanidade mental, da vida, que se encarrega em transformar tudo em nada. Não sabíamos de nada, e acreditávamos ter tudo.

E tínhamos.

Conhecer-te foi uma forma de tocar o que há de mais divino no ser, ainda que, nem sempre, nossa convivência tenha sido um paraíso. Não foi. Choramos quase à mesma medida que sorrimos, mas se os fizemos tanto, porque os fizemos tanto, o equilíbrio se dá na medida do perdão: risos e lágrimas se equiparam quando o assunto é um amor que se desfaz.

Ainda lembro daquele dia. Não lembro muito bem o mês, acho que era fevereiro, mês de Iemanjá, você tão alvo, luzidio, sorrindo para mim como a confirmar, Sou eu. Receba-me. E eu recebi. E abracei com os meus braços capazes, que aguentavam sua robustez de corpo, e acalentavam sua fragilidade de sentimentos. Era tudo o que eu podia fazer, e eu fazia. Era um amor feito com tanta calidez que achávamos que seríamos consumidos por tanta intensidade, a nos devorar como só um grande fogo é capaz. Não havia diferença entre a cama e fora dela, era tudo tão pungente, tão urgente, que mal podíamos suportar o peso da ebriedade de termos um ao outro.

Mal sabíamos que o relógio do tempo, que de tão imberbes chegáramos a acreditar que para nós seria eterno, já estipulava o nosso breve tempo juntos. Mas éramos surdos para ele, então. Se o tivéssemos ouvido, ou se a ele tivéssemos dado ouvidos, teríamos feito algo diferente, ou nosso tempo era mesmo contado?

Era uma alegria ir para a sua casa aos finais de semana, ver sua mãe, no começo reticente, tão próxima tempos depois, amiga, afável. Brincar juntos, cozinhar juntos, toda essa rotina comezinha e por mim tão desejada, ali. Depois de você, Antonio, nada mais sequer chegou perto disso. Não que tenha sido ruim, de forma alguma. Nos interregnos, vivi momentos muito difíceis, em que eu só sonhava em ser acobertado por aquele amor novamente. Realização complexa de uma tarefa atroz: ninguém era você, nem a sua família, nem o nosso jeito, nosso cheiro.

Pareço me lamentar? Não, não quero que soe assim. Uma realidade triste não deixa de ser triste somente porque está contida no tangível e modificável. Se assim fosse, todo mundo viveria naquele mundinho irrealizável da música do John Lennon. Depois do meu tempo sem frestas, amores magníficos vieram, pessoas maravilhosas surgiram, e muito sexo muito bom. Muito sexo muito ruim também. Mas a fricção entre dois corpos pode mesmo ser algo ruim? Bem que pode, se indesejada; nunca foi este o caso, contudo. O ruim era ruim por escolha, porque na vã tentativa de te encontrar, eu testava de tudo, só para perceber o quanto continuava cego, o quanto ainda precisaria procurar.

Depois, compreendi que não era procurar a ti, esses anseios eram mesmo tão juvenis, e você jamais estaria em mim, e onde quer que você estivesse, lá eu não estaria.

Duas entidades divinas, etéreas, separadas pela falta. Dei-me conta, então, que eu precisava buscar um outro que não você, e um amor que nem você. Não, não, me perco ao dizer isso. Um amor com aquela fortaleza, mas longe de ti.

As primeiras brigas vieram quanto tempo depois, você lembra? Eu não lembro bem do que era aridez. Lembro que eram muitas. Tantas quantas duas mentes jovens, que mal reconhecem dentro de si a força do amor e vivenciam com plenitude a do desejo, são capazes de engendrar. Mas elas se foram, Antonio. Essas memórias. Elas me escapam e eu tendo a lembrar apenas do que foi bom. Ou da essência do que foi bom, nem sei. Agora, na idade em que estou, já não tenho certeza se esqueço porque nunca fui de guardar rancor; nem contra mim mesmo, porque bem sabes que eu também tenho culpa, ou se porque a velhice só me faz recordar daquilo que a própria memória não me deixa esquecer.

A memória foge, o tempo foge, e o que sobra? Se você pensa que eu sei a resposta, engana-te. Talvez estas palavras. Talvez nem isso.

Chegamos ao ponto em que acreditar no amor era mais mágico do que destruí-lo. Porque ainda não era chegado o instante de pensarmos o contrário. Então, tudo aquilo que nos deixava à deriva era também motivo para nos unir em plena gratidão. De alguma maneira, no largo daquela juventude, compreendíamos que existia algo ali tão inexequível, tão maior do que nós mesmos, que não importava o quanto vivêssemos, não daríamos conta da abrangência e muito menos de sua compreensão. E foi justamente a presença de sentimentos aliada à ausência de entendimentos que viramos motivo de piada entre nossos amigos. Eu corria ao telefone, e dizia para o melhor amigo, Gabriel, eu e Antonio terminamos. E era uma risada sem fim ao telefone. E eu do outro lado daquela gargalhada, querendo que o mundo explodisse. Naquele tempo, raiva pra mim era aquilo, e o mundo ainda era um lugar perfeitamente habitável. Preso por vontade a ti, tudo era belo. Mesmo na tristeza, a beleza fazia morada. E aquilo que os dias sobrepostos fariam a mim um dia, ali não fazia o menor sentido. Juntos, o tempo do tu e eu era da mais onírica benevolência.

Nos fragmentamos tanto, tanto, Antonio, que depois não nos reconhecemos mais. Esse é o maior prejuízo do fim do amor. Olhar para si e não se reconhecer. Não porque você deixa de ser você com o fim do amor, ou porque os dois são tão intrinsecamente ligados que são indissociáveis. Mas unicamente porque é ao transformar-se em poeira que compreendemos a real dimensão de nós mesmos, inteiros. E precisamos de muito para nos refazer. Chegamos de fato a nos refazer completamente? Talvez sim, mas diferentes. Nossos amigos ainda nos reconhecem, ainda nos param na rua e nos cumprimentam: sim, sabem quem somos nós. Dentro, entretanto, há algo completamente novo, único, e não há outra força no mundo capaz de causar tanto estrago. Nem há medicina que recomponha em nós quem éramos antes do fim. Passado um tempo, somos, como para quase tudo na vida em que exista a dor, a mais recente versão de nós mesmos.

Mas estou me perdendo de novo, Antonio. Onde estava eu?

Em ti. Sim, sempre em ti. Dentro dessas linhas, que são parte do que lembro de tudo o que você foi, e de tudo no que você se transformou, agora rarefeito.

No fundo ainda somos aqueles dois meninos tão solitários às suas próprias maneiras, em busca de novas histórias para contar, e para vivenciar.

E as aventuras, lembra delas? E uma das mais excitantes de todas, roubar livros? Acho que a nossa cumplicidade consolidou-se aí. Por incrível que pareça, no crime. Basta pensarmos que se antes não existíamos um para o outro, passamos a ser uma mente só em ação quando cometíamos esse ato, hoje tão absurdamente impensável. Era ali que colocávamos nossa confiança um no outro, e aos poucos, essa confiança foi se distribuindo para tudo o mais. É tão pueril e ingênuo, mas tão honesto lembrar que parecia tanto que éramos sempre nós dois como protagonistas de um mundo só nosso. E era delicado sonhar os teus sonhos, juntar os rostos no escuro à noite, ouvindo Cranberries e acreditando que nos agarrávamos ao amor porque não existia outra alternativa, uma vez que tínhamos nos encontrado. Existíamos juntos para muito antes do nosso encontro.

Não existe o que vem depois do sentimento, Antonio. Existe o que está contido no próprio sentimento. Mudam-se os personagens, muda-se a forma, o sentimento é o mesmo, transmutado em formas diferentes de fazê-lo sentir. E sendo assim, será o sentimento o mesmo? Talvez. E hoje, enquanto vejo que tenho menos dias para contar do que as flores num ipê em pleno inverno, tenho um sentimento em relação a você que é maior do que todos: gratidão. Depois de você, continuei errando, e errando muito. Mas eu sempre tinha o parâmetro do nosso amor. Pra mim, seria sempre dali para mais, nunca para menos.

Tanto foi assim que demorei, verdadeiramente, a te perder em definitivo. Você me entende, eu sei. Nunca te perdi realmente. Você continua a caminhar comigo, menino. Você se foi há tantos anos e continua em algum lugar, comigo. Por isso que não raro, alegre ou triste, lembro de ti, do teu sorriso, das tuas caretas e dos nossos sonhos. E sempre me sinto mais encorajado. Mas foi, e é, necessário tirar você do objetivo de amor. Não você sendo você, mas entender o outro como sendo um novo horizonte, e não você buscado nesse outro lugar. E foi o que fiz. Só então eu me permiti, novamente, encontrar.

Éramos perfeitamente isso, uma seção de achados e perdidos. Um amontoado de encontros e desencontros. Crescemos tanto em tão poucos anos, que me pergunto às vezes se o amor juvenil não é tão-somente isso: um passaporte com visto para vivermos numa realidade paralela, uma forma de vivermos instantes que se tornam eternos, de descobrirmos aquilo mesmo em que acreditamos. A coisa-em-si que passaremos o resto dos nossos dias almejando tatear.

Você me disse que tinha ficado endurecido, depois de mim. Sempre achei que isso passaria um dia. E pelo visto passou.

Passamos.

Descobrimos que o oposto da ausência não é a presença, é o seguir adiante e, enfim, superar. Vejo você feliz, com aquele mesmo sorriso de sempre, aquele mesmo corpo – tirando os acúmulos temporais, em ti tão soberanos – e sei que seguimos bem, Antonio. Apesar de. E é porque fomos tantos para nós mesmos que hoje podemos ser um para quem elegemos, por fim.

Olho para o vão que deixei para trás e tenho orgulho de mim. Não vejo a escuridão de desencontros infelizes, como tanto temia depois de ti. Vejo todos os frutos das sementes que plantei pelo caminho. E até o terreno onde você também caminhou comigo, saiba que estás em cada um deles. Colho você do chão e levo à boca como quem responde não ao prazer e à satisfação do corpo, mas como quem sabe ser preenchido pela vida que ficou para trás, renovada no porvir.

Dentro de ti, Antonio, que comigo está mais do que todos antes de ti e do que muitos depois também, resplandece o que deixou de mais belo em mim. E é porque você esteve comigo, que hoje eu sei que a seiva que escorre por dentro do meu corpo nasceu em ti, raízes entrelaçadas ao meu passado, ramificado no futuro, seja lá o que ele for.

Não tenho mais muito tempo, Antonio. Mas é para mim importante que tu saibas que fui feliz; tão importante quanto saber que também o foste, ou és. Mesmo com as diatribes com as quais a vida nos conspurca. Mesmo com este negócio dentro de mim a arrancar-me os dias.

Foste, Antonio, porque jamais poderás ser. Não aqui, deste lado. Aqui, continuaremos sendo no passado, e quando eu fechar meus olhos pela derradeira vez, tu sentirás que morreu um pouco também. Não se darás conta, mas saberás. E nesta hora tu hás de celebrar o meu nome, e sentir, mais do que em qualquer outro tempo, que por causa do teu amor, eu hei de nascer outra vez.