15 de outubro de 2015

SINAL (ABERTO PARA O FIM) DOS TEMPOS

Pode parecer piegas, mas eu não acho que tenhamos vindo ao mundo para deixá-lo pior do que quando o encontramos. E antes que você diga que não tem responsabilidade nenhuma quanto ao mundo porque não pediu pra nascer etc. etc., eu digo: você tem, sim. Você – eu, todos nós – pode mesmo ter chegado aqui sem ter tido escolha, aí vai da crença de cada um. Mas uma vez aqui, meu caro, e usufruindo deste mundo, que como tudo, tem seus prazeres e seus achaques, você automaticamente passa a ser devedor.

Penso também que não chegamos ao mundo insensíveis. A gente não nasce predispostos a não se importar com as coisas e pessoas, pelo contrário: está no DNA. É da raça, não tem escapatória. Desde a hora que sua boca atinge o bico do peito, fazendo você calar o berreiro, só aí, nesse momento, você já está demonstrando o saciamento de uma necessidade atávica. Vem antes de você, e está na sua constituição. Após e adentro desse exemplo, existem muitos. Você pode ser mais ou menos feliz na infância. Se tiver pais amorosos, ajuda. Se tiver irmãos companheiros, também. Se não tiver irmãos mas tiver amigos, certamente será um ser mais sociável. Ou não. Pode ser o oposto de tudo isso e, ainda assim, despontar adiante, ao se tornar homem ou mulher, razoavelmente imune às suas faltas.

Que as dores e sofrimentos são inerentes a qualquer vida, basta olhar para o espelho. Nele, e dentro de você, estão todos os registros, indeléveis. Mas só fazer isso não basta, nunca bastou. A comparação é uma característica do ser humano desde sempre, e por isso tendemos também a olhar para as marcas deixadas nos outros. Aprendemos com isso, também. E nos regozijamos, muitas vezes, por não termos chegado ao ponto em que o outro está. Isso também é nosso. Ou você pensa que aquele monte de gente ao redor de um corpo na estrada é o quê? Dentre tantas coisas, são pessoas dizendo-se a si mesmas: ainda bem que não fui eu. Retirando todo o extrato do ser humano, sobra um bagaço que não necessariamente tem algo que se aproveite.

O necessário, o excruciante motivo de batalha tem que ser, precisamente, fazer com que haja.

Numa crônica de 1956, Nelson Rodrigues dizia o seguinte: "No dia em que a criatura humana perder a capacidade de admirar, cairá de quatro, para sempre. E o mal de todos nós, a nossa crise, a nossa doença, é o seguinte: - admiramos, admiramos de menos. Em redor de nós, tudo nos convida, tudo nos induz ao espanto. E, no entanto, examinem esse povo que vai passando, com algo de fluvial no seu lerdo escoamento. Ninguém admira nada, ninguém admira ninguém. Essa impotência de sentimento, esse tédio de alma, essa anestesia coletiva e alvar traduz um desinteresse vital tremendo".

Generosos cinquenta anos se passaram. Na verdade, mais. E o que podemos constatar? Tudo o que diz Nelson Rodrigues continua verdadeiro e atualíssimo, com um detalhe: agravado muitas vezes mais.

Faça o exercício de observar o que lhe rodeia, quase como um experimento. Basta fazê-lo durante, digamos, uns quatro dias. Seguramente, você vai perceber. Não vivemos um caos generalizado porque a vida, complacente, nos oferece muitos prazeres, muitas válvulas de escape. Quantas vezes você já não ouviu alguém dizer “no meu tempo é que era bom, porque....” e haja motivo pra preencher as lacunas de um mundo que “não existe mais”. E, quando a gente menos espera, estamos proferindo as mesmas palavras, e em dimensões cronológicas cada vez mais curtas. Nos pegamos dizendo a tal “no meu tempo...” a cada cinco anos ou por aí. Nostalgia? Não, de forma alguma: uma constatação rasa de que algo muito errado está caminhando a passos largos.

Hoje vivemos muitas crises, e de proporções cada vez maiores. Não é algo pequeno e um ou outro problema maior aqui, acolá. Tudo parece já nascer hiperbólico, ignominioso, sem solução. E coletivo. É o planeta que está ficando mais quente, a oferta de água e de energia ficando cada vez mais escassa a nível mundial, os governos querendo sustentar suas economias ad eternum baseados no consumo. Não é de estranhar que as pessoas estejam ficando cada vez mais grosseiras, impacientes, deprimidas. O que antes era um lamento, um resmungo, que muitas das vezes vinha de alguém tachado logo de ranzinza, hoje se tornou um uivo coletivo e doloroso. Daí para o desespero, é um passo. E o pior inimigo é aquele que não tem nada a perder. Agir através de atos impulsivos, descoordenados com a cognição, pela irritação mais abjeta, é quase sempre certeza de que algo deu ou vai dar errado.

E antes mesmo de criticar as reações psicológicas, é importante ressaltar que antes de tudo elas são físicas. Quem não perde o juízo com extremos de temperatura, seja quente ou frio, de luz ou ausência dela, com o inacesso àquilo que é vital para a sobrevivência? Naturalmente, há uma repercussão mental, advinda do físico.

Contudo, não é apenas disso que estou falando, ou pelo menos, não vejo que as coisas estão se degringolando por fatores que dizem respeito, na maioria das vezes, a ação de governantes.

Refiro-me também ao fato de estarmos cada vez mais perdidos, mais egoístas, menos receptivos, mais apressados, menos tolerantes. Claramente, todas essas coisas têm lugar no que já foi mencionado antes, mas não só. Existem outros fatores que tangenciam comportamentos em massa e que não são ligados unicamente ao preenchimento de ausências ou a reações de ódio porque o calor está torrando os nossos miolos.

É urgente nos darmos conta da nossa própria humanidade, sob pena de nos tornarmos, como prenunciou Nelson Rodrigues, novamente quadrúpedes. Não quero com isso criar o sentimento de que precisamos dar uma de irmã Dulce para com os pobres e necessitados, não é nada disso. O que precisamos mesmo é exercitar a nossa essência. Aquela, que nos faz desejar, gostar, querer, que nos impulsiona a atingir objetivos, os mais variados. É saber canalizar tudo aquilo que faz de nós quem nós não somos para aquilo que, de fato, nos torna seres humanos melhores.

Não é tarefa fácil. Talvez seja algo duro como quebrar rochas. Mas é preciso fazê-lo. Independente daquilo em que você acredita, independente de você ter ou não religião, de ter dores, revoltas e traumas dentro de si, a necessidade é premente. E é precisamente porque a roda do tempo não para, que precisamos seguir em frente. E para que algo à frente exista, é preciso que nós assumamos nossas responsabilidades perante o mundo e o outro hoje. Agora.

Para ver a beleza do mundo, é preciso abrir os olhos da alma.