15 de outubro de 2015

Em professor não se bate nem com uma flor

Eu tinha 18 anos de idade. Ah, era novembro. Um fôlego de piaba e muita cara lisa. Não escolhi entrar na sala de aula. Nunca pensei em ser professor de ensino médio, muito menos de cursinho de vestibular. Aí veio o destino, ele tinha a cara daqueles alistadores pra guerra. Não fui ao quartel aprender como se faz. Ligaram pra mim, era sábado, manhã. Do outro lado da linha disseram: “Tem que dar aula pro vestibular. Cursinho da igreja católica. Paga bem. Uma da tarde. E aí, vai encarar, malandro?”. Isso na época não soou como um chamado irrecusável pra prática da prostituição, mas hoje… é, hoje ainda continua sem parecer isso, pensando bem, é, só um pouco. O que soou nos meus ouvidos foi um chamado ao desconhecido, pra uma experiência nova. E, venhamos e convenhamos, sem hipótese de recusa. Eu precisava de dinheiro, era recém-casado, desempregado, com um curso universitário pra manter e um filho logo pra chegar. Fui lá. Cara, coragem, e o nervosismo do condenado à cadeira elétrica.

Uma estreia maravilhosa não foi. Foi algo mais parecido com o desembarque na Normandia: cento e vinte pessoas numa sala pra quarenta, sala sem ar condicionado, sem ventilador. Eu dando aula de física com uma clareza tão turva que hoje até eu não entenderia. Mas era a minha primeira vez e se ela fosse perfeita, não teria graça. Virei professor? É, posso dizer que não dormi essa noite. Sim, gostei do que fiz. Tanto que no outro ano, lá estava eu, em uma turma noturna no colégio estadual viçando pra ensinar, criando metodologias empíricas, lembrando do jeito de como fui bem ensinado por meus professores. Mais empolgado que pastor da Bola de Neve.

Perfeito. Até aí tudo perfeito…. mas o tempo pesa, e pesou em mim mais rápido que eu pensava. Fico pensando em Aristóteles. Dizem, não sei se é verdade, que ele só dava aula a uma turma e tinha no máximo vinte alunos. Fico pensando como ele se comportaria na situação, minha e de todos os professores que comecei a conviver. Imagina o velho grego tendo que pegar sete turmas em uma escola estadual cada uma com cinquenta alunos, todos cansados de dias de trabalho sem fim, apelando pra que os deuses mandassem dos céus uma queda de energia pra que pudessem ir pra casa mais cedo. Devo confessar que pra mim a felicidade era plena quando as trevas invadiam alguma sala de aula. Fora as cadeiras que voavam, que logo me acostumei, eu tinha um tempo a mais pra ver chegar em casa e descansar as costas, jantar mais cedo e, principalmente, conseguir ver o meu filho recém-nascido acordado; e pra no outro dia, acordar antes dos ponteiros chegarem ao fundo do poço e pegar dois ônibus pra dar aula em mais uma escola, e depois correr, pra pegar o fim de uma aula da graduação, ufa! Hoje eu, que corro dez quilômetros fácil, não manteria esse ritmo.

Apneia é uma prática que se aprende com o tempo. Trinta segundos embaixo d’água no dia primeiro. No dia segundo, trinta e um. E por assim se vai até se chegar aos mil e cacetada segundos. Fôlego de salmão. Essa tática militar é bem comum aos recrutas que, nos quarteis, devem ter pulmões resistentes o suficiente pra correr mais que as balas. Pra um professor são muitas balas: plano de curso, de aula, semana pedagógica, reunião de pais, aulas preparadas, feira de ciências, visto, teste, trabalho, ponto extra, prova, briga, intriga, assinar o ponto. Falando assim, pode parecer normal, carga pesada de todo profissional, mas junte a isso o horário de três turnos de trabalho, a instabilidade da maioria que era e ainda é pro-tempore e o salário que já é bem sabido de todos por aí. Um professor tem fôlego de mil segundos e de sobra pra uma guerra, que quase sempre entra por madrugadas e fins de semana.

O interessante é que esta visão, quartel, balas, fôlego, carga pesada, lembra uma sociedade espartana. Onde os homens eram treinados desde crianças pra serem guerreiros. Professores são guerreiros. Têm paciência de catador de latinha e a humildade de gari. Mas o mais importante, o que ele carrega em seus ombros é o vigor de encarar o dia-a-dia, dia após dia. E não é pra qualquer um. Eu no meu caso, dando aula em três escolas, fazendo o bacharelado, o mestrado e o doutorado em física não aguentei, pedi arrego, fugi da guerra, bati o motor. Foram tantas flechas que vi voando em nove anos de luta, muitas cravaram meu peito, mas como um bom espartano, continuei até onde pude. Vi muitos tombarem antes de mim, segui sem eles, pois aprendi que na guerra não se leva peso morto. Outros, guerreiros mais poderosos que eu, ainda estão lá, gravitando entre a santidade e a loucura. Envelhecendo em dias, meses. É pouco o atenuante de cinco anos que se tem na aposentadoria. Qual é o soldado que fica trinta anos lutando? Eu, olha aí, lutei por quase um terço da guerra.

Professor, penso assim, deveria ter toda a alma inundada da calmaria ateniense de só produzir o saber e transmitir, assim, sem estresse. No meu reino, ah, se eu o tivesse, eu como rei faria a lei primeira: o salário de um professor é tudo que ele quiser. Pronto. Ponto. Assinava e baixo. E decapitava o primeiro subalterno meu que ousasse negar algum desejo a um educador. Decapitava duas vezes e depois crucificava de cabeça pra baixo aquele que tivesse a audácia de tocar em um professor com o intuito de lhe fazer o mal. No meu reino ou ditadura, tanto faz, professores seriam uma espécie de santos vivos que seriam venerados nos dias úteis e teriam o sossego nos dias inúteis. Toda a homenagem a eles seria merecida visto que eles são os guardiões do conhecimento, a dupla hélice que guarda o saber de mais de dez mil anos conquistado por nossa espécie. O professor no meu reino, nem pisaria no chão, pois o seu coração, 99%, dele viveria no mundo das ideias. Contudo, eu não sou rei, nem ao menos ditador, e isso é motivo suficiente pra pôr fim a esse devaneio platônico, é motivo mais do que suficiente pra pôr fim a este parágrafo.

No mundo real, professor é um homem de coração atribulado, que tem que ir as ruas lutar por aumentar de salário e ainda escuta piada de governantes sobre a condição em que vivem. “Escolheram ser professor, acostumem-se com o salário de professor”. Ao contrário da minha visão romântica de governar, os políticos prezam pela manutenção dos seus feudos, temem por suas cabeças. Em geral, o posicionamento de quem está no poder é meio que assim: o professor ganhar mal é manter o pensamento da massa igual ao de hoje. Excelente! Gado come capim e pronto. Professor é um mero cuidador de porcos. Não merecem nem provar da merenda.

Eu perdi a conta das vezes que ouvi em conversas com professores colegas meus, naquele intervalo de nada entre duas aulas, quando um olha pro outro e diz: “vamos lá, temos fôlego de salmão”, perdi a conta das vezes que ouvi o desejo: “como eu queria ser professor estrela, daquele de cursinho que passa na televisão”. Porra! O salário de um professor estrela é menor do que um advogado merda, passa longe de um juiz que determina por leis de merda quanto vai ganhar no fim do mês.  Professor, pelo lado dele, mais do que eu, tem que correr uma meia maratona por dia.  Pra quem fala: “Professor, seja competente e lute pra melhorar, pare de reclamar do salário”, refuto: é difícil ter competência quando se precisa se rasgar todo pra colocar comida na mesa.

“Professor merece todo o respeito, todo o apoio da sociedade, só assim teremos uma pátria educadora”, tem quem acredite, eu mais não. Já falei, não existe o tal reino onde professores são os grandes deuses. Cassetetes no lombo de professores não são beijos de agradecimento. Balas de borracha são muito tímidas pra falar palavras deste calibre. Professor-eu-te-amo, consigo ouvir no silêncio dos alunos e isso é a fonte do fôlego, é o que faz o professor esquecer de vez em quando que está entrincheirado no fronte de péssimas condições de vida e se sinta realizado. E por um momento assim, como Aristóteles, nem que seja por quarenta e cinco minutos, continue ensinando aos alunos a pensar e a entender o pensamento alheio, tomando-o pra si ou não. E no caso de quem pensa que meu posicionamento é pacífico, de os professores se conformarem com a situação, fico bem longe deste paradigma. Lembro aos desavisados que o senhor Aristóteles foi o tutor de Alexandre, o grande, o maior general de todos os tempos. Professor merece ao menos que lutem por ele. Tenho cá com meus botões que foi um professor que deu a ideia a Aquiles do tal cavalo de Tróia.

Está longe o dia em que as condições atuais sejam modificadas. Deixei este fronte do saber e não me orgulho de hoje ser professor universitário, um fronte mais confortável, em detrimento deste abandono. Dou aulas atualmente pra alunos de licenciatura e vejo no olhar da maioria deles um quê de mau agouro, como o soldado no quartel cumprindo os dias pra ir à guerra. Não consigo ter o olhar romântico, a realidade é cruel e tento mostrar a eles. Não quero com isto espantar ninguém, só quero que os que fiquem tenham visão plena do que os espera. Que eles tenham mais coração de Atenas do que de Esparta, sendo guerreiros só o bastante pra brilharem aos olhos das valquírias.