23 de setembro de 2015

Destrânsito

Lá estava ele. Intacto em sua espera. Mais de meio século de idade e uma impossibilidade inconfessável; atravessar para o outro lado da avenida. Impossível tamanha significância para alguns, grande dilema atemporal para o velho Duparc. Debilitado e fugitivo. Era este senhor naquela manhã descolorada pelos rodapés da escaldante trafegação cotidiana. Carros-jatos impessoais. Homens ostentando pequenos prazeres pelos retrovisores. Olhares impenetráveis adentrando os esgotos abertos periféricos.

Duparc era apenas um vulto turvo nas bordas da manhã. Sua quase centenária sabedoria não lhe possibilitava nada além de fazer calejar os corações metálicos da juventude moderna. Sonhava – que em algum momento – alguma alma menos moribunda pela pressa, parasse e o deixasse atravessar para o outro lado do grande globo poluído. Ali ficou por horas – dizem que foram semanas, talvez meses.

Estava sendo procurado pelos netos impertinentes e filhos ferozes sem tempo para diálogos mais saudosos. Duparc abrira as fechaduras ainda no início da manhã e correu ao encontro da aurora. Queria apenas atravessar para conversar com Gossec. Esta, já o esperava à margem de um café sedutoramente inacreditável.

Estava pronto. Depois de tantos feitos nesta vida. Idas e vindas pelos vulcões do tempo. Realizações eminentes e condecorações nas empresas exteriores. Depois de conhecer outras galáxias e viajar pelos mundos indefinidos, o velho Duparc, estava pronto para a perigosa travessia na avenida interminável. Só precisava esperar o fluxo de carros diminuírem e conseguir mexer as pernas já bambas e inchadas. Solados que soltavam de roxo e joelhos pálidos. O sol como uma parede que se deitava – sobre seu rosto – como toneladas. Quem deveria dar passagem para este grisalho desnudo dos anos anteriores?

Velho Duparc, um homem na contramão dos litorais de um imperceptível declínio.

 

João Rocha

Poeta e contista da pequena cidade de Marituba, região metropolitana de Belém/PA. Já participou de uma coletânea de poetas chamada “Frutos Colhidos com mãos de Chuva”, em 2011, e está na antologia de contistas "A Mulher de Branco, e outras mentiras verdadeiras”, da Fundação Câmara Brasileiras dos Jovens Escritores. Escreve contos e artigos para o site português Obvious desde 2012 e mantém o blog “Outrotexto”.