A marcha de Alberto
Alberto Silveira Braga, almirante quatro estrelas reformado, abria caminho com duas sacolas de compras entre o Gandhi, a Marilyn Monroe e o Saci Pererê. Corpos suados bailavam entre confetes e serpentinas, enquanto uma colorida bola de praia era estapeada pra lá e cá sobre o mar de cabeças. Um palhaço de circo passava em pernas-de-pau, uma fadinha purpurinada balançava um bambolê e homens travestidos de noivas, baianas e quengas tocavam instrumentos. Nem Lewis Carroll imaginaria tamanha lógica do absurdo materializada no mundo real; a vitória inquestionável da insanidade coletiva. Afinal, não se tratava de um pesadelo nem o velho Braga estava alucinando ou ficando gagá. Era, sim, o carnaval do Rio de Janeiro; período em que a cidade obtinha o alvará da vagabundagem para cinco dias de embriaguez, galhofa e sem-vergonhice.
O teu cabelo não nega mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega mulata
Mulata eu quero o teu amor
A marchinha trouxe lembranças dos bailes de gala no Teatro Municipal, ele e os amigos de escola naval vestindo fraques elegantes, as mulheres brilhando em fantasias de Cleópatra. Tempo de alegrias comedidas, sem drogas ou libertinagem, rumo à estabilidade: uma esposa decorosa e comprometida a criar futuros gênios da medicina, advocacia ou política. Doutores e senadores. Seus rebentos. “Os Braga? Estes sim são exemplares, modelo de estirpe, não há uma semente ruim entre eles, todos ajuizados e bem-sucedidos”, diriam os colegas de farda, de Clube Naval, e, mais tarde, de seus seletos círculos de gabinete. Acreditou que tudo fluiria no automático quando casou-se com Marieta, e a sensação de dever cumprido o permitiu dedicar-se a sua outra obrigação, comandando corvetas pelo Rio Negro e São Francisco.
Hoje, a simples troca de uma lâmpada lhe exigia um esforço sobre-humano. O tempo é mesmo uma amante inescrupulosa; nos tira tudo e arruína nossa existência. Sortudo havia sido o Heraldo, morto durante o “milagre” do Médici, muito antes de experimentar os dissabores dessa rotina sem apetite sexual, escrava da diabete, hipertensão e colesterol galopante.
Tens um sabor bem do Brasil
Tens a alma cor de anil
Mulata mulatinha meu amor
Fui nomeado teu tenente interventor
Alberto sempre fora entusiasta da boa e velha ironia, mas essa, que o destino miserável lhe imputava, era demais até pra ele. Aquela mesma marchinha, criada por uma geração que sonhava com um Brasil progressista, agora era entoada por esses baitolas e imbecis que deviam estar atrás das grades por perturbação da ordem pública. Como haviam se enganado! Anos e anos desperdiçados tentando limpar a merda desse país, para que, cedo ou tarde, os bueiros todos fossem abertos e a podridão se instalasse como musgos sobre a terra. Que esgoto a céu aberto! Sentiu o rosto em chamas, uma fúria que lhe varria as vísceras, e bendisse sua sorte por não ter trazido o trinta e oito. Se tivesse, sem dúvida esvaziaria o tambor para pôr fim àquele ultraje.
Um rapaz loiro fantasiado de sheik árabe chacoalhava o esqueleto com cerveja na mão. Alberto se deu conta de que lembrava muito Henrique: mesmo tipo franzino, fracote, com olhar de palerma. Deu uma trombada violenta no moleque, que foi ao chão levando outros dois junto com ele, como num jogo de dominó.
– a Qualé coroa!?
– Calma aí, meu senhor!
– É carnaval...
Seguiu em frente com um sorriso de canto de boca, num lampejo de satisfação ao interromper, mesmo que por um minuto, a farra daqueles pulhas. Já estava puto da vida por ter tido que sair na rua. Desde a morte de Marieta, todo ano fazia um estoque de comida e bebida antes dessa ode à estupidez chamada carnaval. Ficava trancafiado os cinco dias, distraindo-se com seus livros e telejornais, apenas ouvindo, a uma distancia segura, rumores da algazarra. Sempre dava certo e ele conseguia evitar o estresse, mas esse ano calculara mal a quantidade de vinho do porto, religioso acepipe antes de cada refeição. Não conseguia engolir uma garfada sequer sem antes entornar duas doses de Porto Quevedo. Ainda assim, decididamente, não tinha valido a pena pisar fora de casa.
Entrou e sobre a mesa da sala estava uma carta. Porteiro filho da puta! Já advertira o Antônio, seu filho mais velho, que essa história do porteiro ter uma chave do apartamento era não apenas desnecessária, mas também imprudente. Embora ele nunca viajasse, nem mesmo dormisse fora de casa, os porteiros conheciam sua rotina e poderiam entrar quando ele não estivesse, pegar uma cerveja aqui, um gole do uísque ali, um bombom de licor acolá... Talvez aí estivesse a explicação porque seu Porto Quevedo acabara tão depressa dessa vez. Filhos da puta!
Aproximou-se da mesa e viu o que estava escrito no envelope: “A/C Almirante Alberto Braga”.
Paralisou. Sentiu como se mergulhasse num oceano em tempestade. Um suor gelado e opressivo se formou em segundos, escorrendo em gotículas por seu corpo, o coração palpitando como rufos de tambor. Era a letra, a inconfundível letra de Henrique.
Hesitou por longos minutos. Caminhou com dificuldade até a cozinha, as pernas ameaçando ruir como colunas seculares, e encheu o copo de Jack Daniels. Agora, o vinho do porto simplesmente não daria conta. Virou metade da dose, rasgou o envelope e começou a ler a carta, mas parou quando o copo de uísque se espatifou no assoalho.
Encarou o vazio, neurônios pipocando por terrenos baldios da memória, até o som da marchinha resgata-lo das profundezas. Andou feito um zumbi até a cômoda da sala, tirou o trinta e oito da gaveta e saiu à varanda.
O bloco estava parado bem em frente ao seu prédio, oculto sob a copa das árvores.
Ó jardineira porque estás tão triste
Mas o que foi que te aconteceu
Foi a camélia que caiu do galho
Deu dois suspiros e depois morreu
Engatilhou e disparou um tiro em cada direção, conscientemente, numa insanidade ordenada. Voltou para dentro, alheio aos gritos de desespero, e sentou-se na cadeira com o revólver no colo. O olhar, perdido no porta-retratos, buscou viajar no tempo: ele, de farda branca e quepe da Marinha, Marieta num vestido austero de dona de casa, Antônio com oito anos e o pequeno Henrique, com quatro, camisa do Botafogo, shorts e meião, o único que não olhava para a câmera, encarando de cenho franzido algo que apenas ele enxergava. Mais atrás, atracada na base naval de Aratu, via-se a Fragata Niterói, que Alberto estava prestes a comandar pela baía de Todos-os-Santos.
O porteiro e a polícia irromperiam porta adentro pouco depois, levando o velho almirante Braga para uma viagem sem volta.
No carnaval seguinte, o bloco da Rua do Catete levou dois mil foliões às ruas. Ninguém se lembrava do velho militar aposentado que morava no prédio da esquina, sujeito rabugento que vira e mexe arrumava briga com vizinhos e comerciantes. Nem ao menos se lembravam da história que dera cabo de sua vivência por ali e que na época inundara os jornais e tabloides sensacionalistas: o almirante descarregara um revolver da varanda, matando dois jovens fantasiados de Raul Seixas e Bob Marley, que acompanhavam o cortejo. Condenado a dez anos de prisão, foi negado o regime semiaberto, apesar das limitações da idade. A pena, contudo, foi encurtada pelo próprio almirante, habituado a comandar seu destino como se fossem navios de guerra, graças a uma navalha surrupiada para dentro do presídio pelo filho de um colega de farda. Um corte limpo na garganta e pronto, o fim da marcha do velho almirante Braga.
Ah sim, o surto na varanda supostamente ocorrera após a descoberta do suicídio de seu filho esquizofrênico. Mas disso também ninguém se lembrava, uma vez que a Terra já completava uma volta em torno do sol e os deuses da “embriaguez, galhofa e sem-vergonhice” nos traziam um novo carnaval.