18 de agosto de 2015

Para Tabucchi, um requiem

Quando encontrei Tabucchi, não da mesma maneira que seu Eu encontrou Pessoa, eu não sabia quem ele era. Antes que eu pudesse pesquisar sobre sua vida, resolvi então saber quem seria Pereira, um de seus personagens, presentes na obra “Afirma Pereira”. Naquele momento, pensei que estivesse diante de uma obra de um autor português. Engano logo desfeito quando uma pesquisa rápida me levou até a Itália. Contudo, descobri que o autor italiano quase se tornara um português de primeira. E foi pela leitura de “Afirma Pereira” que tive a vontade de partir, então, em direção à Requiem.  

11883786_10152938044830981_167146523_oAntes da história, há uma nota introdutória ao romance em que Tabucchi nos informa que a personagem que chama ‘Eu’ é quem será responsável pela execução do livro.

Daí, ficamos diante de um impasse, seria o ‘Eu’, circunscrito no livro, o próprio Tabucchi? Ou, sendo literatura, não seria nada mais do que uma mera invenção do autor tentando nos ludibriar através de sua nota introdutória? Afinal, o poeta é um fingidor, mas os prosadores também podem sê-los. Questões amenas, que ao final das contas pouco importam.

Seu amor pela língua portuguesa teria nascido quando lendo um poema de Fernando Pessoa teria dito que precisava apreender em si a língua que conseguiu dizer algo que talvez não lhe fosse possível na sua língua materna.

 

“Se há uma pessoa no mundo que escreveu um poema assim, eu quero aprender essa língua”

(Tabucchi sobre o poema Tabacaria, de Fernando Pessoa)

Além disso, outras obras suas têm como pano de fundo a terra lusitana. Seu amor era tanto pela escrita portuguesa, pesquisador que era do simbolismo português, que admitiu ser necessário escrever uma obra em português, tendo escolhido seu breve romance Requiem para tal, apesar de deixar claro, ironicamente, que a obra deveria ser escrita em latim. Daí, se alguém lhe perguntasse por qual motivo ele não havia escrito em sua língua materna sua resposta seria: “... uma história como essa só poderia ter sido escrita em português, e pronto”.

E, assim sendo, a música para os mortos nada mais é do que toda a história em que este Eu se faz presente, recheada de solidões, e que ocorre durante um domingo quente de julho, em uma Lisboa “deserta e tórrida”.

O início começa quase como um desvario, talvez devido ao calor que fazia. O Eu, que, aos poucos, irá nos contar toda a sua história, revisitando os locais por qual viveu quando residida em Lisboa, fica em dúvida se havia marcado para o meio dia ou para a meia noite o horário do encontro que havia marcado com o Convidado.

“mas talvez (ele) quisesse dizer doze da noite, porque os fantasmas aparecem à meia-noite.”

E é interessante notarmos esta frase, uma vez que entendemos, num primeiro momento, que quando ele quer se referir a fantasmas talvez esteja querendo dizer que o Convidado seja alguém que poderia estar sumido há bastante tempo ou algo parecido.

Mas o leitor logo vai entender que o seu Convidado é realmente um fantasma. Quem seria? Durante todo o romance há algumas pequenas indicações. O próprio Cauteleiro Coxo que surge na praça, enquanto o Eu conversa com sua própria sombra, é uma delas.

Assim, durante todo o percurso que vai realizando, frente aos encontros que vão ocorrendo o Eu vai, também, ao lado de sua história, sempre que possível, fazendo-nos a conhecer a culinária portuguesa, ou melhor, alantejana, uma vez que são tantos os alantejanos que surgem em seus encontros solitários.

Essas solidões, que vão sendo construídas através dos diálogos que se formam com o Guarda do Cemitério, com o Senhor Casimiro, com a Isadora e muitos outros, permeiam a realidade e a loucura desse Eu, que pode ser considerado como o Estrangeiro.

Tabucchi cria um romance em que toda a sua verossimilhança parece ser a verdadeira realidade. A realidade de um louco ou de alguém que fala com fantasmas, mas que possui momentos de sanidade, poder-se-á dizer. A verdade é que nada parece ser tão natural quanto almoçar com pessoas mortas e sentir que é necessário tirar uma cesta depois de comer. A história narrada é tão lúcida que não vimos problema em admitir que Tadeus o leve para almoçar e que ainda faça questão de pagar o almoço. Mas estará morto, alguém gritará. Sem lhe dar ouvidos, ele seguirá em frente, sonhando com a morte do pai, da qual o cancro foi o algoz, até chegar ao Pintor Copiador, que só pinta detalhes das obras de Bosch e que há dez anos paga suas contas a vender essas cópias.

Requiem merece destaque não pela presença, talvez, fantástica na obra, mas porque Tabucchi consegue dar vida a um ser que se faz presente em toda e qualquer sociedade. Esses desvarios, que podem ser cometidos desde nascença ou que podem ser trazidos às nossas vidas devido aos acontecimentos que nos ocorrem, põem o homem em destaque, algo que há certo tempo, por exemplo, na literatura contemporânea não vem tendo destaque, a não ser em escritores como Valter Hugo Mãe ou Luiz Ruffato. Parece que o escritor contemporâneo busca, ainda, se entender e falar apenas de si, esquecendo a universalidade necessária para que uma obra seja duradoura.

Isso não é o que ocorre com a obra do autor italiano. Durante o breve romance, Tabucchi cria um verdadeiro panorama da vida deste Eu que necessita reviver durante algumas poucas horas o seu passado, precisa nos contar como chegou até ali e cria uma narrativa que ainda não diz o que é dito. Apesar dos encontros, alguns pontos ficam cegos, como Quem seria Isadora? Sua ex-mulher? Teria ela se suicidado? Por sua causa ou por causa de Tadeus? E por qual razão ele iria se encontrar com o Convidado? Por quais motivos ele teria voltado a Lisboa? Como teria sido chamado até ali?

Como uma canção que preludia o descanso do morto, a narrativa vai, aos poucos, tomando um ar melancólico fazendo com que o leitor esteja lado a lado deste estrangeiro, como um fantasma estaria, até que cheguemos, por fim, ao local e horário combinado com o Convidado, que, provavelmente, seria Fernando Pessoa.

Após a conversa, entre risos e perguntas sem respostas, ambos saem conversando no cais, ouvindo uma canção antiga. O dia quente e tórrido, quase claro, como a vida parece ser nas manhãs de domingo, acabava por terminar em seu oposto, depois de vivenciado quase que uma vida inteira durante doze horas, paira um ar de solidão extrema, mas com uma pontada de felicidade, na escuridão da noite.