29 de abril de 2015

Um palhaço

 

Isaías contemplava o rosto moreno, demarcado por lápides de espinhas mal camufladas pela maquiagem. Aquele rosto ainda jovem, mas já tomado pela decrepitude, dominava as feições da aspereza.

– Então? O senhor tem ou não tem? Se o senhor não tem não posso fazer nada pelo senhor.

– Eu? Claro que tenho. É só que...

Remexia sem método nem objetivo o interior da pasta, imitação de couro com manchas de desleixo. Isaías voltava a perscrutar aquele rosto impaciente. Demorou um pouco nos olhos castanhos, tentou engatar uma frase... e se lembrou da felicidade que sentiu em seu primeiro engarrafamento. Perdeu o rumo da conversa.

O uniforme verde-musgo deformava o corpo dela. Aparou o coque.

– Bem, o senhor pode voltar outro dia, com a documentação necessária.

– Mas, veja você...

– O senhor pode voltar quando estiver com a documentação, caso contrário nada posso fazer pelo senhor. São as regras... afinal, o senhor tem um cheque em seu nome, ou não tem?

Isaías saiu, sem fechar a pasta, o vento chicoteando-o na tarde de agosto. Voltaria a chover. Ele não precisava passar por aquilo. Voltou-se e viu que ela o olhava com a satisfação de se ver livre de um inconveniente. Sou transparente para todo mundo, quem dera voltar a ser opaco, pensou. Da chuva ele não tinha medo, mas gostaria de evitar que anoitecesse.

Subiu a ladeira aos pulos e logo já passava pelo Central. As moedas trincolejavam nos bolsos. Queriam liberdade, novas aventuras. Talvez, um caldo de cana... os ambulantes recolhiam com pressa as mercadorias... e esbarrou em um sujeito troncudo.

– Sai da frente, cheio de pulga!

– Desculpe, amigo...

O sujeito percebeu a inquietação de Isaías, apertou-lhe o ombro, e se afastou em direção à uma lotérica.

Isaías resolveu voltar.

– Mas o que senhor...

– Digo-lhe somente uma coisa: Jorge será informado de seu comportamento.

– Que Jorge?

– Jorge, meu amigo, Jorge o gerente regional. Jorge que me incumbiu de testar o atendimento aos clientes nas lojas do centro.

– O senhor...

– Jorge. Grave o nome.

A pasta protegia apenas o rosto da chuva. Ao entrar na Lapa a calça pesava-lhe. Retirou as moedas e parou em frente a uma lanchonete. Ficou em pé, pois uma goteira bombardeava o único banco disponível junto ao balcão. Ele poderia contar cada grão de açúcar naquele suco de maracujá; bebeu quatro. Isaías encarava os passantes, incapaz de frear o tempo.

Isaías a divisou em paralelo, na fila de ônibus. Quando teve certeza que ela o havia reconhecido, Isaías pousou o polegar direito sobre o nariz. E remexeu os outros dedos como se tocasse trompete.

 

Flávio VM Costa nasceu em Salvador e é formado em Jornalismo pela Universidade Federal da Bahia. Mora em São Paulo. Publica contos no blog http://contosemchamas.blogspot.com