4 de abril de 2015

Nonato, capítulo 6

Se Edmilson soubesse que aquele seria seu último dia na Terra, talvez não estivesse trancado naquele quarto há mais de uma semana. Talvez a certeza da morte o libertasse, primeiro da culpa que parecia ter lhe comido os dezoito anos, depois das promessas de Jadinho, que lhe mantinha protegido e prisioneiro. Era dessas coisas que todos fingiam não saber. Matar Dona Lu fora o fim da vida de Edmilson: junto com a velha, foram enterrados sua família, seu trabalho e seu nome. O moleque da água agora era uma assombração em forma de vivo, cuja passagem suscitava falatório enforcado entre os vizinhos de bem. Não tinha o respeito dos traficantes, nem o desprezo dos ladrõezinhos de bicicleta. Seu crime era público, seu destino também.

Fora das mãos de Deus e da lei, Edmilson agora pertencia a Jadinho. E isso era o mesmo que estar morto, embora, dizem, um pouco mais confortável. Se viesse a falecer de verdade (como a velha), deixaria para trás uma conta de caixão e uma mãe em prantos. Morrendo em vida, garantia qualquer sorte de futuro para o irmão, que teria bolsa num colégio bom e uma cesta básica todo mês. No fundo, no fundo, Edmilson queria fazer alguma coisa boa e evitar o inferno. Queria aceitar Jesus, mas tinha medo de ser rejeitado. Talvez alguém lá em cima, vendo seu sacrifício, pudesse perdoar os crimes cometidos e os em via de.

Talvez isso tenha acontecido, dependendo do que você acredite. Infelizmente as palavras, como os seres humanos, não podem expressar o que se passa no reino dos céus.

***

Se soubesse o que veria nos olhos de Edmilson, talvez Nonato não estivesse esperando em frente àquela casa há tanto tempo. O que era pouco provável. Edmilson era a única coisa o distraindo do grande vazio que encontrava todos os dias pela manhã. Sem sua mãe, sem a certeza de ser sólido, sem ideia do que aconteceria consigo a partir dali, ele era todo vingança. Uma vontade injetada, sem força, que apenas dava o que fazer. Como um caçador pré-histórico, o futuro resumido à próxima presa. A refeição, o descanso e tudo outra vez. Ao menos era.

Não conseguia lembrar do rosto do moleque da água e esse borrão, mais que tudo, o mantinha acordado à noite. Como um homem podia destruir sua vida sem a cortesia de uma face?

Nonato se postava perto da esquina, no portão de uma casa vazia. Se permanecesse quieto, respirando regularmente, conseguia manter-se invisível por um período considerável. Ele sabia que Edmilson não havia sido preso, mas fora incapaz de descobrir onde o haviam escondido. Sem saber como conseguir informações, ele se limitava a ouvir conversas de vizinhos e velhas desocupadas. Entre o amontoado de picuinhas e pequenices, divisava pedaços de informação que se encaixavam com um estalo. Jadinho havia sumido com o moleque, ninguém sabia para o quê. Fosse virar soldado na gangue, fosse vender na Aldeota. Diziam que ele seria enviado para a Colômbia, ajudar a fechar acordos de fornecimento. Ou que mataria o prefeito.

Não fazia diferença. Nonato ouvia a mãe de Edmilson sofrer seu pedaço de portas fechadas e se perguntava se ele seria idiota a ponto de voltar. O que podia fazer era seguir Roberto, o irmão mais novo, na esperança de um acaso. Ele não possuía uma arma, nunca batera em outra pessoa na vida. Muito menos sabia como encontrar alguém que deveria estar perdido. Nonato só queria encontrar o homem que matou sua mãe, olhar em seus olhos de fantasma e gritar que existe. O resto, decidiu, seria improvisado pelo caminho.

***

Edmilson se escondia num prédio inacabado. Em algum momento, o grupo de empresários dono da obra decidiu que não valeria a pena gastar tanto naquela parte suja da cidade. Então deixaram sua contribuição de lixo, uma carcaça de concreto e limo tomada pelo mato. Jadinho começara seus negócios ali. Primeiro, expulsando os vagabundos e cheiradores de crack que dormiam no terreno, depois estabelecendo sua primeira boca e trazendo todos de volta, como clientes e empregados. Esse era o segredo do negócio, devolver para a comunidade.

***

Seu Fernando era um desses empresários. Apesar de nunca ter colocado os pés no bairro, assinou diversos formulários para mover moradores do ponto A ao ponto B, abrir espaço na área C e construir tantos andares a tantos milhões. Quando decidiram abortar o projeto, ele franziu a testa enquanto tomava café, ditou diversos recados ao telefone e teve um dia ruim.

Já seu filho mais velho, Fernando Júnior, conhecia bem o prédio. Aparecia uma vez por mês para levar cocaína e maconha prensada. Vinha num carro novo e pagava em dinheiro. Gostava de tratar os traficantes como amigos, mesmo sem ser correspondido.

Uma vez, apareceu na boca com Diana no banco de trás do carro. Ela estava deitada numa posição incômoda porque o garoto não queria dar pinta de bicha. O mesmo garoto que pediria um boquete mais tarde e depois dormiria, chapado demais para transar.

Diana, que mais de uma vez já havia atendido nos corredores escuros do prédio velho. Costumava receber em droga, mas sempre com o cuidado de não ser passada para trás. Gente chapada fica meio burra. Ela mesma quase nunca usava, ganhava mais repassando para clientes mais ricos ou para as colegas na rua.

***

Nonato acreditava que Edmilson era seu destino final. O que aconteceria depois era mistério. Mas talvez fosse esse o ponto, não haveria depois. Se matasse o assassino de sua mãe, fecharia o ciclo, o depois se confundiria com o início e nenhum deles permaneceria, nem ele mesmo. Desapareceria pela última vez, desvanecendo no ar, não apenas invisível, mas informe como gás. Cada molécula um pouco de Dona Lu, um pouco de Edmilson e um pouco de pecado.

Mas o que ele não sabia é que os ciclos nunca se fechavam. A linha apenas seguia em frente, dividindo-se em múltiplas bifurcações, torcendo-se em nós complicados, trançando uma longa teia.

A teia segue, em todas as direções, a perder de vista, envolvendo Nonato, Roberto, Edmilson, você e a Terra inteira.

***

- Mãe mandou dizer que tá rezando.

Edmilson, após a surpresa inicial, sentiu raiva do irmão mais novo, metido naquele prédio imundo com uma sacola de supermercado.

- Tá fazendo o quê aqui, Beto?

- E que tu devia ir embora. Fugir daqui e não voltar nunca mais.

- Vai embora, pivete.

Roberto olhou para o irmão, muito sério.

- Tu tá comendo?

- Roberto, se alguém te ver aqui, vai dar merda. Eu to escondido, tu não entende, não? Ninguém pode saber.

- Mas todo mundo sabe!

Edmilson segurou o irmão mais novo pelos ombros com violência.

- Vai embora e não chega mais perto dessa boca – disse, empurrando-o.

- Tô só dando o recado, porra!

- Já deu. Já deu a merda do recado. Agora vai embora e diz pra mãe que tá tudo bem. Vai, vai logo.

Roberto ainda olhou para trás quando alcançou a rua, como se tivesse esquecido alguma coisa. Então se lembrou da mãe, soluçando com o terço em mãos toda noite antes de dormir. À merda, Edmilson. Tem mais que se foder mesmo.

***

Edmilson viu o irmão sair em silêncio. Depois de tanto tempo trancado, era um alívio sentir raiva. Queria bater em alguma coisa, gritar com alguém. Não tinha certeza do que Jadinho pediria dele, mas esperava que fosse apenas bem longe. Quando chegou naquele quarto, o corpo implorando por um cachimbo, a alma querendo apenas sua mãe, o mundo se resumia a noites intermináveis de choro e dor. A pior parte já passara, ele repetia para si mesmo. A pior parte.

Ele viu a figura magra parada perto da porta, mas era apenas uma ilusão. Piscou os olhos e ela não estava mais lá. Sentiu um arrepio na espinha. Parou à janela, olhando a noite, não lhe davam sequer um cigarro.

Foi quando sentiu o puxão nas costas da camisa. Perdeu o equilíbrio, caindo no chão e batendo a cabeça com força. A vista escureceu e os olhos encheram de água. Que porra...? Antes que conseguisse reagir, sentiu o primeiro chute no estômago, retirando todo seu oxigênio à força. Tentou rolar para o lado, se afastando da dor, mas não conseguia se mexer. A mesma figura negra assomava sobre seu corpo, um moleque sujo e pelado. Vendo de baixo, ele não percebeu que eram do mesmo tamanho. A figura parecia entrar e sair de foco e Edmilson instintivamente esfregou os olhos. Vendo de baixo, a figura parecia um gigante. Seria a morte? Ela falava alguma coisa, mas ele não conseguia entender. Seus ouvidos zumbiam, a boca estava seca e ele era incapaz de mexer direito à cabeça. Mas via os olhos dela vermelhos e lacrimosos, hipnotizado pela saliva que escorria pelo canto de sua boca. Claro que a Morte era negra.

Quando veio o segundo chute, Edmilson se encolheu, tentando se proteger como podia. A morte desaparecera, mas ele continuava sentindo seus golpes, na bochecha, nas costelas, nos quadris. E por que o barulho? Os gritos se misturavam à dor e ele não sabia se era ele quem gritava. Tentou levantar, mas um golpe no braço o levou de volta ao chão. Precisava rastejar para fora. Chamar os homens no andar de baixo, gritar por ajuda. Como ninguém ouvia nada? Se apoiou na cama, sentindo a respiração pesada da figura invisível. Talvez ele ainda estivesse enrolado, chorando e chamando sua mãe, tentando fazer as mãos pararem de tremer. Talvez a velha tivesse vindo buscá-lo. Talvez, se corresse agora, conseguisse fugir.

Deitou na cama, concentrando todas as energias nas pernas bambas. Quando sentiu as mãos etéreas em suas roupas, escapou com um safanão e correu pelo quarto. Talvez se chegasse, talvez se fugisse, talvez se... Alcançou a nesga de céu escuro e pulou de cabeça pela janela aberta.

***

Não! Não! Ele precisava escutar. Precisava saber. Nonato correu à janela, mas foi tudo rápido demais. O corpo de Edmilson caíra com um estralo que não sabia se imaginado. Toda a raiva guardada queimava em seu peito e encontrava o caminho dos olhos. Sentia a cabeça aérea e os braços feito chumbo.

Nonato desceu as escadas, sem forças, sem se importar onde estava ou o que aconteceria agora. Ele só precisava ouvir. Sua mãe existia, ele existia. Desviou de três homens armados que voltavam do quintal correndo, sobressaltados. Lá fora, no meio do mato, estava o corpo de Edmilson, num ângulo ridículo. Eles existiram, mas não havia mais nada.

Nonato olhou para o moleque da água jogado no chão e, sem saber o que fazer com tudo o que carregava consigo, uivou. Os homens da boca, ouvindo o lamento sem corpo, debandaram do prédio abandonado sem escutar quando ele começou a gritar com o morto, numa voz rouca e chorosa, pelas horas a vir.