21 de março de 2015

Nonato, capítulo 5

A mãe de Nonato se chamava Lúcia. Você não sabia disso, mas agora pode vê-lo impresso, bem visível, no prontuário ao lado de sua cama. Mas é tarde demais. Dona Lu não está mais ali, apenas o Corpo.

O Corpo deveria ficar sob a guarda do Estado durante 30 dias corridos. Como era caso de morte violenta, ele seria levado ao IML, onde se realizaria autópsia e seria determinada a causa mortis. Lúcia Bezerra dos Santos, 47 anos, múltiplos ferimentos realizados por instrumento pontiagudo.

Caso nenhum ente querido fizesse a identificação do Corpo, ele seria enterrado com outros Corpos numa cova coletiva no Cemitério do Bom Jardim.

***

Nonato, que não sabia nada disso, esperava. Era uma atividade com a qual estava acostumado e, na verdade, até gostava. Quando chegava a algum lugar com o uniforme da empresa, costumava ser imediatamente direcionado para a sala de espera mais próxima. Uma assinatura de documento que fosse buscar podia se transformar em horas de espera, instalado sem conforto em cadeiras de plástico ou, nos escritórios mais refinados, em poltronas de bom gosto igualmente desconfortáveis. A idéia de ser pago para deixar o tempo passar o agradava. Às vezes, se desse sorte, era esquecido por alguma recepcionista mais distraída e podia passar boa parte da tarde ouvindo conversas alheias e assistindo ao desfile de gente bem-sucedida.

Agora, porém, a espera tinha cheiro de morte. Era óbvio, mas ainda assim desconcertante. A iluminação fluorescente realçava os olhos fundos e a palidez dos que esperavam. No balcão no fundo da sala, um único atendente despachava familiares e entes queridos. Nonato imaginou que encontraria rostos chorosos e desespero, mas aquele não era o lugar para isso. Ali era onde se tomavam providências, onde se resolviam problemas e, onde o luto tomava a forma de burocracia. Um pouco de ordem podia ser jogada no buraco negro do peito com dois goles de café fraco.

- Nonato Pereira Filho.

Pensou ter ouvido seu nome.

- Cesar Batista Pereira Filho- repetiu a mulher no balcão. Foi apenas impressão.

- Um momento- respondeu o atendente, digitando com rapidez, os olhos fixos na tela.

- “Cesar” sem acento.

- Só um minutinho.

- Já faz mais de 30 dias. O homem falou que era 30 dias, mas faz mais de 30 dias. Um mês, já.

- Um momento, por favor.

Nonato se acomodou na cadeira, flexionando a mão para ter certeza de que ainda estava no mesmo lugar. Ali estavam os que permaneciam. Os que se foram, do outro lado daquelas paredes, não esperavam mais nada.

***

Naquela mesma noite, Nonato estaria esperando novamente. Dessa vez, do lado de fora da casa de Edmilson. Não era de seu feitio assassinar outro ser humano, mas, quanto mais a idéia encontrava espaço em sua mente, mais parecia uma promessa.

Nonato sentia-se tranquilo pela primeira vez em muito tempo. O bicho que vivia em seu peito ainda arranhava por dentro. Mas agora, ele tinha um rosto e um nome e uma baixa expectativa de vida.

***

Após descobrir seus poderes de invisibilidade, durante três semanas, ou o que bem podia ser uma vida inteira, ninguém soube de Nonato. Deslizando entre as história dos outros, ele aparecia brevemente aqui e ali. Frases soltas num papel branco. Quem era ele? Um rapaz negro e algo barbudo, sem banho e sem vida nos olhos, sobrevivendo de pequenos furtos. Não parecia haver resquícios de antes de.

Sem ser visto, sempre sem ser visto, roubava pão de manhã e frango à tarde. Às vezes, comia com as mãos, ainda sem coragem de entrar na própria cozinha. Dormia na sala, numa bagunça de cobertores, feito ninho ao pé da porta. À noite, Nonato sonhava e, enquanto se remexia no emaranhado de pano, aparecia e desaparecia de vista. Durante o dia, tentava controlar o feito. Era como descobrir um novo braço que sempre estivera ali. Com um pouco de paciência, conseguia tornar-se transparente, primeiro devagar, depois com mais confiança, desde que não pensasse muito no assunto.

E ele não pensava. Comia quando tinha fome, visitava o banheiro quando queria evacuar e ficava invisível quando queria desaparecer. O que tornou-se a maior parte do tempo. Pensou em seu Fernando na empresa, mas logo seu celular descarregou e ele não se deu ao trabalho de ligá-lo novamente. Depois, as roupas limpas acabaram e então o papel higiênico. Nonato ficou surpreso com o quão pouco precisava de tudo isso.

***

Agora, estranhava usar tantas roupas. Foram apenas três semanas ou ele havia morado sua vida inteira em um país estrangeiro? Sentia-se caminhando por uma cidade de papelão, incapaz de reter significado. Ele já havia percebido, mas com o canto dos olhos: o truque não era desaparecer, mas reunir energia o suficiente para permanecer visível.

- Lúcia Bezerra dos Santos.

- Um momento.

- “Lúcia” com acento. No “u”.

- Entendido, senhor, um minuto por favor.

***

Nonato andava a cidade inteira sem ser visto. Como não se arriscava em transportes públicos, ia a pé mesmo. Percorria seu bairro, o centro e lugares que nunca havia visitado. O interior da casa de estranhos. O prédio da empresa onde trabalhava. Só precisava tomar cuidado para não tocar em ninguém e estava livre para explorar. Como se a invisibilidade fosse um muro, dividindo ele mesmo do resto do mundo.  Como se ele fosse o único capaz de enxergar num salão repleto de cegos. Eram seus momentos de maior solidão.

Algumas vezes, passava por Diana em alguma esquina. Numa ocasião, encontrou Roberto, irmão mais novo de Edmilson. O moleque caminhava com um amigo, levando uma bicicleta enferrujada pelo guidon. Nonato o seguiu por alguns metros até sua casa, guardando uma distância desnecessária.

Edmilson morava numa casinha sem calçada, apertada numa viela de construções iguais. Um daqueles lugares onde o pouco espaço fazia com que se abrissem as portas e se vivesse quase na rua, com o resto da comunidade. Nonato pensou em entrar, mas ouviu os barulhos de dentro: a TV ligada, as vozes na cozinha, os gritos da mãe de alguém. Decidiu, então, dar meia-volta. Não queria descobrir que havia humanidade ali.

Nonato, punhado de peças soltas, tentava se remontar no homem que traria justiça para sua mãe, que havia conhecido tão pouca. Não parecia haver mais nada.