9 de fevereiro de 2015

Operação Impensável, de Vanessa Barbara

Dizem que foi Tolstói quem soltou a célebre frase: “Se queres ser universal, descreve a tua aldeia”.

E Vanessa escreve precisamente sobre o que sabe. Escrever sobre o que você sabe não significa escrever apenas sobre as coisas ao seu redor, embora seja isso também. É um ato auto-consciente de desnudar-se, fazendo epifanias diárias de modo a descobrir aquilo em que se acredita, o que te faz sentir, como seu eu faz com que os outros se sintam sobre você, o que tem real importância, o que se sobressai, o que tem relevância pra você no mundo, como você um dia viveu, como vive hoje, o que te surpreende, o que você aceita, o que você não tolera – a lista é longa. Mas, em outras palavras, é tratar daquilo que faz de você quem você é.

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Mas ela também escreve sobre aquilo que pensava que conhecia: o sentimento do outro perante o si-próprio, o que pode haver de mais terno, delicado e profundo que são as dicotomias dos relacionamentos humanos. Mas se ela escreve sobre o que não sabe – ou o que só soube depois – seguramente ela escreve sobre o que sabe que sente, o que por si só já é, às vezes, conhecimento para além do desejado.

Operação impensável foi o nome de uma operação do governo britânico, instada por Winston Churchill logo após o final da Segunda Guerra Mundial, na qual ele planejava invadir a União Soviética, já que, inicialmente, ele achava que tinha um exército disponível para isso e que teria forças aliadas para fazer a investida. Depois, por muitos motivos, a ideia foi abandonada e só veio à público em 1998.

Em 2014, Operação impensável, livro vencedor na categoria Romance do Prêmio Paraná de Literatura deste mesmo ano, Vanessa Barbara nos apresenta Lia e Tito. Ela, historiadora, ele um programador de computadores. Ambos se encontram na vida, se apaixonam, se casam e, não muito depois, entram em graves conflitos. Dividido em quatro partes distintas (Período de paz, Early-war, Mid-war e Late-war), o romance vai narrando, de forma anacrônica e ao mesmo tempo ascendente, todos os momentos pelos quais o casal passa. Em “Período de paz”, o leitor é levado a conhecer os protagonistas através dos e-mails trocados, de notas esparsas, resenhas de filmes que ambos assistiam juntos e através do próprio narrador, criando um mosaico de informações que compõe toda a arqueologia do que era aquele amor, em toda a sua delicadeza, em todos os seus processos de construção, “tijolo com tijolo num desenho mágico”, até que, em dado momento, o encanto acaba. “Early war” começa cinco anos depois e 47 dias antes do grand finale, ironicamente, com uma citação do livro de memórias A história de uma viúva, de Joyce Carol Oates, o que já anuncia como Lia, logo mais adiante, irá se sentir diante das atitudes do ser pernóstico com quem conviveu: repleta de sentimentos ambivalentes ou de incredulidade, praticamente pulverizada, mas nunca resignada. E é aí onde a obra entra em seu grande momento de tensão, pois a parte que começa falando de viuvez termina falando de guerra.

O leitor é, então, levado a “Mid-war”, o meio da guerra, por assim dizer, e onde as forças em oposição se acirram. Após o confronto com o marido, Lia continua a avaliar que forças são capazes de reger seus domínios (ou falta deles, em todos os seus múltiplos sentidos). Aqui também temos notas esparsas, bilhetes, e-mails e cenários de guerra ou de quase guerra, criados por uma narradora que também pode ser a própria autora, que conquanto não seja historiadora é, como dito anteriormente, uma mulher que escreve sobre aquilo que sabe, ou sobre aquilo que estuda, pesquisa e investiga, para então saber.

Na quarta e última parte, “Late war”, temos, inicialmente, as dolorosas descrições do que é, para a narradora, a desconstrução de um relacionamento. Enxergamos, de perto, todas as fraturas expostas. Mas se engana quem pensa que esse romance é demasiadamente dolorido, ou mesmo, pessimista. Não é. Não completamente, pelo menos. Fazer com que o leitor enxergue o que foi vivido, sinta aquela dor, é também uma forma de demonstrar por onde se dá o início da reconstrução de Lia. Se “o humor é a delicadeza do desespero”, citação de Boris Vian que abre a última parte do romance, seguramente é também o pilar sobre o qual se constrói, ou se reconstrói, o alicerce para sustentar o porvir. E é bem possível que, sendo ainda tão jovem, o que estava por vir não seria pouco.

Quando perguntaram a James Joyce por que ele continuava a escrever sobre Dublin, embora não morasse mais lá há muitos anos, ele disse: “Para mim, eu sempre escrevo sobre Dublin porque se eu conseguir chegar ao coração de Dublin, eu posso chegar ao coração de todas as cidades do mundo. No particular está contido o universal”.

Talvez seja por aí que se deva compreender o romance de Vanessa Barbara. Narrativa construída em camadas, dialogando com diversas formas de mídia e aliado a uma narrativa singular, Operação impensável tem em sua gênese a universalidade porque dialoga com aquilo que todo ser humano adulto já viveu, se não pessoalmente, pelo menos das histórias dos outros. Romance tecido através da verve de uma autora sempre em busca de diferentes formas de se fazer entender, a história de Lia e Tito, entretanto, atinge o âmago não apenas por ser universal ou pelo poder de causar identificação, mas sobretudo porque ele insiste em nos lembrar que alguém que tinha tudo para envergar permanece lá, e é essa ideia de sobrevivência – e chega-se até a ser possível vislumbrar a possibilidade de superação, algo além do manter-se vivo – que se sedimenta no leitor: apesar das idas e vindas – inclusive de tempo e espaço no próprio romance – uma hora a gente vai. E termina por seguir adiante.

Freud dizia que família é uma fábrica de neuroses (embora essa afirmação se desse, essencialmente, no sentido da educação familiar a qual os membros das diversas gerações são expostos, e a carga que isso gera em cada um). Se cada um de nós já carrega as suas por toda uma vida, imagine se ver compelido a carregar as do Outro. Há um limite, é o que nos parece dizer Vanessa Barbara ao final de sua obra. Há um limite para tudo o que se carrega junto com quem supostamente caminha ao seu lado. Existe um momento em que carregar o fardo do outro se torna um inferno. E é nesse momento que se deve dar o direito ao grito de basta!, e se reinventar.

Operação impensável não é uma típica história da Quadrilha do poema de Drummond. Aqui, Teresa realmente amava João. A hecatombe se dá porque, antes de se poder chegar a uma terceira pessoa, já haviam várias, e um João que não amava sequer a si mesmo.

É a partir da junção do quebra-cabeças formado por duas vidas que se interligam, que Vanessa Barbara nos entrega seu romance mais íntimo e mais visceral até agora. Se não há resposta fácil quando o assunto é o desejo, também não há quando a pergunta é E a partir daqui, para onde? O livro não traz respostas, mas dá um amplo significado ao exercício do amor, sobretudo do amor-próprio. Não o egoísta, mas aquele capaz de se refazer para enfrentar o seguinte, sem armas erguidas. Operação impensável se faz, assim, a um só tempo, um libelo à guerra e à paz. E, igualmente, um romance indispensável.