20 de novembro de 2014

As coisas que a gente (não) vê: a revista Acrobata como experiência estética de vertigem

No quadro de Jan Brughel e Paul Rubens, 1617, observa-se várias simbologias expostas; várias tentativas de conceituação da realidade. A pintura acima denominada Allegoria della Vista é a representação de um ateliê de arte, no início do século XVII, onde se observa a disposição quase aleatória de vários quadros com cenários diferentes, entre eles os dos próprios pintores, além de esculturas, globos e até um misterioso telescópio, desenvolvido por Kepler, quinze anos depois.

No plano central, à esquerda, uma espécie de musa observa detidamente uma outra imagem, um outro quadro, uma outra inspiração. Parece até a representação futurista de uma espécie de computador, mostrada por um dos anjos que ainda guardava o desejo renascentista do belo, da forma e da representação. Pintar a vida não é tarefa fácil, exige dedicação e muita imaginação, pois a vida ou aspectos daquilo que denominamos de “realidade” somente se materializam pelo olhar.

Se Bruegel e Rubens sob vários ângulos tentaram capturar e representar cenas de um cotidiano tão conhecido aos seus olhos é porque desejavam transportar no tempo suas intenções, suas formas de ver – e porque não suas escolhas, cores e conceituações? E fizeram isso sob várias perspectivas. No horizonte do quadro se abrem várias virtualidades e por isso mesmo várias dimensões de leituras. Parece que desejavam extrapolar para fora do quadro e da visão do leitor uma antecipação bem contemporânea, aquela que diz respeito a vontade de representar as dobras e redobras da vida a partir dos sentidos, das sensibilidades, no caso dos pintores, através da visibilidade, da forma que damos as coisas.

Hoje utilizamos outras formas de ver, outros suportes de memória tão eficientes quanto a pintura, como as revistas, por exemplo. Vejo agora uma revista editada por Aristides Oliveira, Demétrios Galvão e Thiago E. lançada semestralmente durante os anos 2013 e 2014, em Teresina. A revista intercepta, juntamente com a pintura de Bruegel e Rubens, um desejo histórico e humano de apreensão da realidade através da linguagem. A revista Acrobata procura a partir de várias perspectivas e nuances fazer aparecer para seus leitores um mundo recortado, vazado, tridimensional. Se para os renascentistas a busca em demonstrar o mundo a partir da ilusão de profundidade tornou-se quase uma obsessão, haja vista o desejo de recriarem a realidade, para os artistas contemporâneos isso já não é nenhuma novidade nem mesmo uma obsessão estética.

Hoje sabemos que nada pode ser representado de forma realista ou verdadeira. Pois o real sempre escapa a qualquer conceituação, ou seja, nossas palavras, artes e conceitos pretendem dar conta de algo que é sempre da ordem do escapamento e do esgotamento. Diferente dos pintores renascentistas que procuravam traduzir a realidade através da exatidão geométrica, nossa tarefa é bem mais árdua: tentar apreender a vida por onde ela nos escapa, nos fragiliza e nos golpeia. A arte continua sendo o remédio e o veneno, pois inventa a multiplicidade, preenchendo nossos vazios existenciais de sentidos, mas está sempre em vias de escapamento, de esgotamento, de devir.

Acrobata, metáfora do movimento, da leveza, mas também da vertigem, serve como imagem para pensar a multiplicidade das leituras estéticas que tentam se equilibrar em meio à vontade de dizer o (in)real. É através da pulverização de sentidos que damos movimento a vida. A alegoria da visão, pensada por Bruegel e Rubens, para singularizarem sua arte, também serve para pensar nossas acrobacias diárias que podem ser significadas pelos sentidos e pelas imagens. Aprendi que as acrobacias são intervenções estéticas instituídas pela visão. É o olho que institui a vertigem e não o salto.

A revista Acrobata dialoga com várias possibilidades de vertigem como entrevistas, poesias, contos, fotografias, cinema, artes plásticas, performances, processos de criação, entre outras formas de captura da linguagem, pois nunca se diz o que se vê e nunca se vê o que se diz[1], como cita G. Deleuze, quando trata da vida como obra de arte. Para que a vida pulse é necessário que se rache com os jogos do enunciável, com aquilo que se estabelece entre o visível e o enunciável. Dobrar e redobrar o enunciável das coisas e das palavras é uma operação própria da arte de viver.

Ao dobrar e redobrar é necessário também que se desconstrua o visível como nos adverte Jacques Derrida[2]. Existe uma margem de invisibilidade em toda visibilidade. Desconstruir as visibilidades é desequilibrá-las, é perfurar os sistemas de pensamento naquilo que atuam como verdades. É deslocar linguagens, pensamentos e hierarquias, como fez o artista plástico e quadrinista Amaral, entrevistado pela Acrobata, quando lembra sobre a recepção do seu quadrinho Hipocampo, que foi considerado um catálogo bonito mas com textos incompreensíveis para os leitores. Em sua resposta-réplica, a crítica feita leva a pensar sobre até onde compreendemos uma linguagem se sempre existe a tentativa de sobreposição de uma linguagem a outra, pois segundo o artista existe as coisas que a gente vê, as que a gente não vê e aquelas que não se quer ver[3].

Uma outra possibilidade de pensamento do-fora, de vontade de deslocamento dos sentidos, apreendida pelas linhas cartográficas da Revista, é a Correspondência Erótica para Flora A., escritas por Nina Rizzi, em diálogo com George Bataille, quando suas “personagens” vivem o deslimite, o excesso e o transbordamento sexual através da vida e da poesia, desconstruindo o significado habitual das palavras para se encontrarem no excesso, onde as experiências e as sensações transfiguram a linguagem em potência, fazendo com que a linguagem erótica produza outros sentidos. Em uma das cartas-poemas, a autora declara: sua poesia, Flora, destrói o significado habitual das palavras, o sacrifica, foge a qualquer discurso habitual [...] Seu sexo invade a literatura como resposta à existência mecanizada. Fazemos sexo, como um jogo, uma representação em que imaginação e linguagem são cruciais como as sensações[4].

É como nos sugere Nayhd Barros, ao fazer suas Notas sobre Vivre sa Vie, filme de Jean-Luc Godard, realizado em 1962, ao tentar mostrar que o pensamento e as palavras estão conectados com a vida. O filme uma espécie de ensaio visual sobre a vida e as possibilidades de liberdade, propõe a partir de um diálogo frenético de Nana, personagem principal da narrativa, recortada em doze episódios, pensar que as coisas nem sempre são como as vemos ou como diz a própria personagem quanto mais se fala, as palavras dizem menos[5].

Essas possibilidades de diálogo e de desequilíbrios de pensamentos e de linguagens existentes na Revista Acrobata abre dimensões e espectros de leitura e de sentidos, assim como a pintura de Bruegel e Rubens, pois o que é a arte senão um traço que institui a diferença? Pensar em termos de desequilíbrio da linguagem, de desconstrução é saber que a verdade se dá ao olhar, mas também se retira, como o telescópio jogado ao chão no quadro Allegoria della Vista, metáfora do visível, da visão, mas sempre um visível tangencial e limitado, pois lhe escapam as zonas de sombra e de não-visibilidade.

A vida nas suas dobras, redobras, saltos e tentativas de equilíbrio somente é possível quando se consegue aproximar de um pensamento que possa dá conta daquilo que é visível e vivível. Apenas quando nos constituímos leitores das coisas e das pessoas, ou escritores, em toda sua complexa dimensão, é que inventamos forças capazes de enfrentar nosso caos, nossos modos de subjetivação, não é à toa que a revista Acrobata intercepta a vida naquilo que ela tem de mais fascinante: a capacidade de inventar e refletir sobre novos modos de existências ou estilos de vida - e porque não novas formas de visibilidade e de sensibilidade?

por Ana Cristina Meneses de Sousa Brandim[1]

[1]DELEUZE, Gilles. A vida como obra de arte. In: Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992. p.122.
[2] DEERRIDA, Jacques; Bergstein, Lena. Enlouquecer o subjétil: pinturas, desenhos e recortes textuais. São Paulo: Editora UNESP,1998.
[3]OLIVEIRA, Aristides et al. Entrevista com Amaral. Revista O Acrobata: literatura audiovisual e outros desequilíbrios. nº2. Nov.2013.p. 43.
[4] RIZZI, Nina. Correspondência Erótica para FloraIn: A., OLIVEIRA, Aristides et al. Revista O Acrobata: literatura audiovisual e outros desequilíbrios. nº2. Nov.2013.p.78.
[5]BARROS, Nayhd. A vida é a vida: notas sobre Vivre sa vie, de Jean-Luc Godard. In: A., OLIVEIRA, Aristides et al. Revista O Acrobata: literatura audiovisual e outros desequilíbrios. nº1. Jun.2013.p.81.

[1]Professora do curso de História da Universidade Estadual do Piaui (UESPI). Doutora na área de Cultura e Memória pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Tem vários artigos publicados em livros e revistas eletrônicas. Atualmente coordena a Especialização em História, Cultura e Sociedade. Gosta de pintura, literatura e outras artes.