1 de novembro de 2014

Perfil Poesia Brasileira, Torquato Neto: “Qualquer palavra é um gesto.”

Poesia. Acredite na poesia e viva.
E viva ela. Morra por ela se você
se liga, mas por favor, não traia.
O poeta que trai sua poesia é um
infeliz completo e morto.
Resista, criatura.
(Torquato Neto)

Noite quente de meio de primavera em que as delícias das terras lá de cima do Brasil chamam atenção, pensamento já suficiente para relembrar poetas nordestinos e nortistas. Torquato Neto não está tão longe de nós, viveu – infelizmente – muito pouco, mas o bastante para deixar sua marca autoral por onde passou. Mal sabia ele, quando resolveu suicidar-se - ao completar 28 anos -, que o cenário cultural brasileiro ficaria desolado sem sua presença. Apesar disso, a falta da presença física de Torquato não desfez a grandiosidade que foi adquirida por ele; seja como poeta, jornalista e, principalmente, compositor.

Seu trabalho com a música popular brasileira agregou parcerias com nomes como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Jards Macalé. De forma sintetizada, o movimento tropicalista tem toques essenciais do marginal Torquato. Marginal, assim é definido o estilo de Torquato de forma geral, apesar de transcender o rótulo. Talvez as obras mais conhecidas do poeta se concentrem mesmo nessa produção musical – embora música seja poesia – vale mais destacar sua produção puramente literária.

Torquato nasceu em Teresina, capital piauiense, em 9 de novembro de 1944, há 70 anos. Saiu de seu estado para estudar jornalismo no Rio de Janeiro e, apesar de ter deixado o curso num período de dois anos, exerceu a profissão mais tarde no jornal Última Hora, onde possuía uma coluna adorada pelo público mais jovem. Ali se instalou.

No que se refere a poesia, Torquato começou a escrever ainda muito novo, há registros de poemas escritos em sua infância e na adolescência. Tendo uma fase de despreocupação formal e outra na qual utilizou métodos para incluí-la. Para muitos, utilizou da poesia como uma forma de resistir. “Transgressor” é outro adjetivo usado frequentemente para tentar – apenas tentar, porque é heterogêneo – definir o poeta. Isso porque ele mostra uma característica um pouco dadá, sua própria fala em uma entrevista em que nega o “-ismo” para o movimento Tropicalista prova isso. A marginalidade da poesia de Torquato ia além da escrita, ele era um espelho de sua obra. Dessa forma, era seu próprio anjo torto e louco, com todos os seus requintes. Uma representação do extremo. O desassossego do poeta tem relação com o momento vivido por ele, que mexeu no campo da criação, com uma explosão cultural brasileira e suas várias vertentes, e também no político, pois viveu a ditadura.pauperia

Um livro compilando sua obra poética foi lançado apenas após sua morte, organizado por sua mulher e por Waly Salomão, “Últimos dias de Paupéria”. De lá pra cá, outros livros contendo poesias de Torquato foram publicados, não se limitando apenas à língua portuguesa. Temas consideravelmente perturbadores são encontrados em seus escritos, com muita sutileza, como o medo e a tristeza.

Em 1972 - ao cometer suicídio -, em sua carta de despedida, disse que ficava. Disse não, gritou. “FICO” e ficou. Jaz aqui Torquato Neto, entre nós, no caos do dia a dia.

 

 

POEMAS

Um Cidadão Comum

Sempre subindo a ladeira do nada,
Topar em pedras que nada revelam.
Levar às costas o fardo do ser
E ter certeza que não vai ser pago.

Sentir prazeres, dores, sentir medo,
Nada entender, querer saber tudo.
Cantar com voz bonita prá cachorro,
Não ver "PERIGO" e afundar no caos.

Fumar, beber, amar, dormir sem sono,
Observar as horas impiedosas
Que passam carregando um bom pedaço
da vida, sem dar satisfações.

Amar o amargo e sonhar com doçuras
Saber que retornar não é possível
Sentir que um dia vai sentir saudades
Da ladeira, do fardo, das pedradas.

Por fim, de um só salto,

Transpor de vez o paredão.

 

Tome nota

por todas as ruas
onde ando sozinho
eu ando sozinho
com você
e você
se é que se lembra
(se lembra)
olha assim pra mim
como capa de revista
pelo rabo-do-olho
de artista,
e sorri.
Eu acho tudo muito legal
Mas a verdade
É que o nome normal disso aí
É :
s-a-u-d-a-d-e;
pois bem:
sei que vou sozinho
sei que vou também sozinho
mas acontece
que parece
que você
é como se é que fosse

o próprio caminho.

 

Solista com uma guitarra e luvas

eu sou terrível
tível
eu sou horrível
ao nível sim
eu sou incrível &
cravo! e-u
SOU o fim da picada
(alô moçada)
do outro lado da corda

qualquer platéia me agrada

 

O BEM E O MAL

muito bem, meu amor
muito mal
meu amor
o bem o mal
estão além do medo
e não há nada igual
o bem e o mal sem segredo
as marchas do carnaval
muito mal, meu amor
muito bem
nem vem com não tem
que tem
tem de ter
na praça da capital
muito mal
meu amor
tudo igual
nada igual ao bem e o mal
2 (experimente é legal)
eu creio que existe o bem e o mal
mas não há nada igual
e tudo tem mel e tem sal

_

a) A virtude é a mãe do vício
conforme se sabe;
acabe logo comigo
ou se acabe.

b) A virtude e o próprio vício
- conforme se sabe -
estão no fim, no início
da chave.

c) Chuvas da virtude, o vício,
conforme se sabe;
é nela própriamente que eu me ligo,
nem disco nem filme:
nada, amizade. Chuvas de virtude:
chaves.

d) (amar-te/ a morte/ morrer:
há urubús no telhado e carne seca
é servida: um escorpião encravado
na sua própria ferida, não escapa: só escapo
pela porta de saída).

e) A virtude, a mãe do vício
como eu tenho vinte dedos,
ainda, e ainda é cedo:
você olha nos meus olhos
mas não vê nada, se lembra?

f) A virtude
mais o vício: início da
MINHA
transa, início, fácil, termino:
"como dois mais dois são cinco"
como Deus é precipício,
durma,
e nem com Deus no hospício
(durma) nem o hospício
é refúgio. Fuja.

 

Explicação do Fato

Parte I

Impossível envergonhar-me de ser homem.
Tenho rins e eles me dizem que estou vivo.
Obedeço a meus pés
e a ordem é seguir e não olhar à frente.
Minúsculo vivente entre rinocerontes
me reconheço e falho
e insisto.
E insisto porque insistir é minha insígnia.
O meu brasão mostra dois pés escalavrados
e sobram-me algumas forças: sei-me fraco
e choro.
E choro e nem assim me excedo na postura humana:
sofro o corpo inteiro, pendo e não procuro
a arma em minhas mãos.
Sei que caminho. É só.
Joelhos curvam-se, amaziam ao chão que queima
e me penetra e eu decido que não posso
envergonhar-me de ser homem.
A criança antiga é dique barrando o meu escôo
e diz que não, não me envergonhe.
Não me envergonho.
Tenho rins mãos boca orgão genital e
glândulas de secreção interna:
impossível.
No entanto sinto medo
e este é o meu pavor.
Por isso a minha vida, como o meu poema,
não é canto, é pranto
e sobre ela me debruço
observando a corcunda precoce
e os olhos banzos.

Parte II

Também tenho uma noite em mim tão escura
que nela me confundo e paro
e em adágio cantabile pronuncio
as palavras da nênia ao meu defunto,
perdido nele, o ar sombrio.
(Me reconheço nele e me apavoro)
Me reconheço nele,
não os olhos cerrados, a boca falando cheia,
as mãos cruzadas em definitivo estado, se enxergando,
mas um calor de cegueira que se exala dele
e pronto: ele sou eu,
peixe boi devolvido à praia, morto,
exposto à vigilância dos passantes.
Ali me enxergo, à força no caixão do mundo
sem arabescos e sem flores.
Tenho muito medo.
Mas acordo e a máquina me engole.
E sou apenas um homem caminhando
e não encontro em minha vestimenta
bolsos para esconder as mãos, armas, que, mesmo frágeis,
me ameaçam.
Como não ter medo?
Uma noite escura sai de mim e vem descer aqui
sobre esta noite maior e sem fantasmas.
como não morrer de medo se esta noite é fera
e dentro dela eu também sou fera e me confundo nela e
ainda insisto?
Não é viável.
Nem eu mesmo sou viável, e como não? Não sou.

O que é viável não existe, passou há muito tempo
e eram manhãs e tardes e manhãs com sol e chuva
e eu menino.
eram manhãs e tardes e manhãs sem pernas
que escorriam em tardes e manhãs sem pernas
e eu sentado num tanque absurdamente posto no meio da rua,
menino sentado sem a preocupação da ida.

E era todo dia.
Havia sol
e eu o sabia
sol: era de dia

Havia uma alegria
do tamanho do mundo
e era dia no mundo.

Havia uma rua
(debaixo dum dia)
e um tanque.
Mas agora é noite até no sol.

Parte III

Vou à parede e examino o retrato,
irresponsável-amarelo-acinzentado-testemunha.
Meus olhos não se abrem e mesmo assim o vejo.
E mesmo assim te vejo, ó menino, encostado à palmeira de tua praça
e sem querer sair.
E mesmo assim te penso dique,
desolação de seca na caatinga, noite de insônia,
canção antiga ao pé do berço,
prata
fósforo queimado
poço interminável, seco.
Ouço teu sorriso e te obedeço.
Eu que desaprendi a preparação do sorriso
e não o consigo mais.
Estou preso a ti, ainda agora,
apesar do cabelo escurecido,
as mãos maiores e mais magras
e um súbito medo de morrer, amor à vida, tolo.
tenho preso a ti a palavra primeira
e o primeiro gesto de enxergar o espelho:
ouço-te, sou mais desgosto em mim, incompreensível.
À tua ordem decido não envergonhar-me de existir
nesta forma disforme e de osso
carne
algumas coisas químicas
e uma vontade de estar sempre longe,
visitando países absurdos.

Não posso envergonhar-me de ser homem.
tenho um menino em mim que me observa
e ele tem nos olhos
(qual a cor?)
todas as manhãs e tardes e manhãs com sol e chuva
e eu menino, que me alumiava.

Tenho um menino em mim e ele é que me tem:
por isso a corcunda precoce
e os olhos banzos: tenho o corpo voltado à sua procura
e meu olhar apenas toca, e leve,
a exata matriz da calça
molhada em festa vespertina da bexiga.

**Nota de agradecimento ao grande Carlos Careqa pela sugestão de escrever sobre Torquato.